quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

O evangelho de Lucas - parte 1

Estamos estudando o Evangelho de Lucas no Forum Atos, e, fazendo as minhas pesquisas, tenho lido bastante coisa interessante que eu vou transcrever aqui também, começando pela introdução, falando da autoria, da cronologia, das fontes e do estilo literário do evangelho de Lucas. Entretanto, é necessário lembrar um primeiro dado que geralmente se nos escapa, que é o fato de que, inicialmente, os relatos da vida de Jesus se propagaram oralmente, através dos Apóstolos e daqueles que lhes foram mais próximos. Chegou um momento em que foi necessário relatá-los por escrito. Existe muita controvérsia sobre a cronologia dos dois evangelhos, Mateus e Marcos, sendo que é pacífico que João tenha sido o último, e quase pacífico que Lucas tenha sido o terceiro. Com relação aos dois primeiros, existe uma tendência moderna de que se baseiem, ambos, num escrito anterior, chamado de "fonte Q", mas também é controverso, havendo quem advogue a existência de dois proto-evangelhos que desapareceram até a formação do cânon.

Retomando o tema de Lucas, praticamente não há dúvidas de que, em virtude do estilo literário comum a ambos e do fato de terem o mesmo destinatário, Teófilo ("aquele que ama a Deus", em grego), o evangelho de Lucas é considerado como um conjunto com o livro de Atos dos Apóstolos, sendo que este último livro, logo no primeiro versículo, fala da existência de um "primeiro tratado". Muito provavelmente, ainda que Teófilo possa ser um apelido, se tratava de uma pessoa real, alguém de alta posição no império romano, com recursos suficientes para patrocinar o escritor, o que era algo relativamente comum à época (inclusive a dedicatória ao patrocinador).

Pouco se sabe a respeito da biografia de Lucas. Aproveitando-se disso, a escritora americana Taylor Caldwell fez uma versão romanceada de sua vida, intitulada "O Médico de Homens e de Almas", que teve relativo êxito. Entretanto, a tradição mais aceita dá conta de que era sírio, nascido gentio em Antioquia (há quem diga que ele era filipense), muito bem educado na cultura grega, e que, como Paulo afirma em Colossenses 4:14, era médico. Sua ligação com Paulo (que o chama de "cooperador" em Filemon, v. 24), parece ter sido decisiva para que conhecesse os outros apóstolos e vultos principais do cristianismo primitivo. Há alguns autores que afirmam que ele teria sido um dos setenta e dois discípulos enviados a pregar o evangelho (Lucas 10), mas não há maiores evidências de que ele tenha conhecido Jesus pessoalmente, ou tenha sido testemunha ocular de muitos dos fatos por ele narrados no livro em questão. Tudo indica que tenha sido companheiro de viagens de Paulo, mas não se acredita que tenha se convertido pelo ministério do apóstolo. Afinal, em Atos, relatando os acontecimentos que envolviam o apóstolo, várias vezes ele utiliza o pronome "nós" (16:10-17; 20:5-15; 21:1-18; 27:1-28:16). Termina o livro de Atos em Roma, com Paulo, antes da execução deste último, e antes também, da destruição do templo em Jerusalém, no ano 70. A maioria dos estudiosos entende, comparando as evidências internas de Lucas e Atos e sua correspondência com os fatos históricos e as cartas de Paulo, que a data mais provável para o Evangelho de Lucas é o começo da década de 60.

O estilo de Lucas é cativante. Tem, sem dúvida, uma cultura grega muito bem formada, daí seu desejo de colocar em ordem os fatos da vida de Jesus (cfe. Lucas 1:3). Talvez por ser médico, gosta particularmente dos detalhes, de dizer que a mulher tinha hemorragia havia 12 anos e tinha gasto todo seu dinheiro com médicos (Lucas 8:43), ou ainda a mulher possessa de um espírito de enfermidade havia já 18 anos (Lucas 13:11). Procura relatar um grande número de parábolas, de maneira detalhada e inédita, como é o caso da parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-32), que consta somente do seu evangelho. Neste quesito de ineditismo das parábolas, ganha de Mateus por 15 a 11 (Marcos tem uma parábola inédita apenas, a da semente em crescimento – Mc 4:26-29). Há 7 parábolas contadas pelos três, 5 por Mateus e Lucas, e 1 por Marcos e Lucas.

O evangelho de Lucas é considerado, cronologicamente, o terceiro evangelho escrito. Conforme se depreende do primeiro versículo de sua obra ("Visto que muitos têm empreendido fazer uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram"), é muito provável que conhecesse os escritos de Mateus e Marcos, mas procura trilhar um caminho independente. As fontes de Lucas parecem ser, principalmente, as "testemunhas oculares e servos da palavra" (1:2), embora provavelmente tivesse se aproveitado do esquema narrativo de Marcos, tendo em vista a similaridade entre alguns episódios comparados e sincronizados. Em geral, Lucas amplia a descrição dos fatos anteriormente narrados pelos dois primeiros evangelistas, já que, além do particular gosto por parábolas inéditas, se interessava também nas minúcias médicas, geográficas e históricas daquilo que relatava.

Enfim, a leitura do evangelho de Lucas mostra um autor muito interessante, que procura, digamos, ampliar a "audiência" dos evangelhos. Ainda que haja controvérsia sobre qual tenha sido o primeiro, se Mateus ou Marcos, o que parece é que Marcos seja um evangelho para "consumo interno", de uso sobretudo de Pedro, para que os novos discípulos saibam quem é o Cristo que eles estão pregando. Já Mateus dirige o seu relato muito mais aos judeus, como uma espécie de apologia do cristianismo em meio ao judaísmo. Lucas já amplia as boas novas para o mundo, aproveitando-se da língua e da cultura grega universal. Por se basearem numa espécie de sinopse da vida de Jesus, são chamado de evangelhos sinópticos. João virá depois, pouco preocupado com a narrativa histórica (a sinopse, portanto), e muito preocupado com aquilo que entende como sendo a verdade da revelação divina, o que leva a escrever um tratado teológico defendendo a divindade plena de Jesus contra o gnosticismo que ameaçava solapar as bases da nascente Igreja cristã. Eu gosto particularmente disto: embora creiamos que todos os quatro tenham sido inspirados pelo Espírito Santo para escrever os seus evangelhos, nem eles nem a Bíblia escondem os seus estilos pessoais, e as motivações que os levaram a escrevê-los.

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