terça-feira, 15 de abril de 2008

Grandes livros - 2

"A Trégua", de Mario Benedetti, brilhante escritor uruguaio, é um dos grandes livros que li, que certamente está na minha lista "top ten". Escrita em primeira pessoa, como se fosse um diário, com doses bem equilibradas de humor ácido e lirismo (além de um certo sarcasmo), conta a história de Martín Santomé, um viúvo de 49 anos de idade, com 3 filhos já moços, que trabalha numa repartição dessas bem burocráticas de uma empresa em Montevideo, em 1959, e, conforme já deixa claro na primeira linha do livro (um diário que começa numa segunda-feira, 11 de fevereiro), está a 6 meses e 28 dias de se aposentar, o que confirma uma impressão que eu tenho, a de que todo grande livro começa com uma ótima frase ou um excelente parágrafo inicial. Santomé se sente "um pouco como o Heródoto da empresa, o registrador e escriba de sua história, a testemunha sobrevivente". Por ter ficado viúvo ainda relativamente jovem, criou os filhos mais por obrigação do que por vocação, e a maneira como ele se relaciona com eles marca ótimos momentos cômicos e dramáticos do livro. Diz Santomé: "Nenhum de meus filhos se parece comigo. Em primeiro lugar, todos têm mais energias do que eu, parecem sempre mais decididos, não estão acostumados a durar. Esteban é o mais esquivo. Ainda não sei a quem se direciona seu ressentimento, mas é certo que parece um ressentido. Acho que me respeita, mas nunca se sabe. Jaime talvez seja o meu preferido, ainda que quase nunca eu consiga me entender com ele. Parece-me sensível, parece-me inteligente, mas não me parece fundamentalmente honesto. É evidente que há uma barreira entre ele e eu. Às vezes acho que me odeia, às vezes que me admira. Blanca tem pelo menos algo em comum comigo: também é uma triste com vocação de alegre".

Tudo caminha nesse marasmo pré-aposentadoria (sem nenhuma garantia de que não contamine também a pós-aposentadoria) até que a empresa contrata uma nova funcionária, chamada Laura Avellaneda, bem mais jovem do que Santomé. No ritmo do diário, aos poucos, ele vai se dando conta de que está apaixonado por ela, que já tem um namorado, Enrique, ao qual deixará para que o romance entre os dois se instale na narrativa e a incendeie. Assim, ciente da formalidade e do distanciamento que caracteriza o tratamento pelo pronome pessoal "usted" no idioma castelhano, no domingo, 16 de junho, Santomé registra no seu diário: "Chamo-a de 'tu' desde sexta-feira, 7, mas ela ainda não". Ao mesmo tempo, um de seus filhos se revela homossexual e deixa a casa do pai, que se surpreende mais pela atitude do rapaz do que por preconceito, já que por ele tudo continuaria igual como antes. E isto no Uruguai da década de 50. Infelizmente, não posso dar mais detalhes sobre o que acontece com todos os personagens principais, pois isso certamente tiraria uma parte enorme da surpresa e do prazer de ler esta obra-prima, à qual faltam adjetivos superlativos para qualificar. Tampouco posso dizer por que se chama "A Trégua", mas quem lê-lo saberá a razão do título do livro. Leia com calma, pois há trechos saborosíssimos da melhor literatura latino-americana (e mundial).

P.S.: Uma boa notícia: A L&PM publicou uma edição de bolso (capa acima) que está à venda nas livrarias e nas bancas das grandes cidades por apenas R$ 12,00. Este sim é um baixo investimento com um enorme retorno. Vale a pena conferir.

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