domingo, 6 de abril de 2008

O evangelho de Lucas - parte 18

O capítulo 12 de Lucas começa contando que milhares de pessoas se aglomeravam, a ponto de alguns se atropelarem, quando começa uma de suas pregações. A primeira orientação de Jesus, pela tradução portuguesa, parece que foi reservada exclusivamente aos seus discípulos: que se acautelassem do fermento dos fariseus (v. 1), mas a melhor tradução é que "acima de tudo", "primeiramente", os seus discípulos deviam tomar cuidado com o fermento dos fariseus, a hipocrisia. Em seguida, ele repete uma advertência que já tinha feito (Lucas 8:17), que nada há oculto que não venha a ser revelado. Os versículos vão reforçando este alerta, e nos vv. 4 e 5, Jesus fala de corpo, alma e inferno. Aqui reside uma das controvérsias doutrinárias a respeito do homem entendido como corpo e alma, da imortalidade desta, e da existência real do inferno, que também é objeto de discussão em Mateus 10:28. Respeitadas as opiniões contrárias, penso que essas diferentes discussões, que se inter-relacionam, tendem a sublimar um outro aspecto desses dois versículos, que é o temor que se deve ter para com Deus. Ainda que, simbolicamente, esteja também se referindo ao zelo excessivo dos fariseus para com oc corpo, Jesus fala literalmente do temor que alguém tem de ser assassinado, que é um temor real e presencial, afinal se pressupõe a existência de um inimigo que está no seu encalço, e faz uma comparação com o temor reverencial que se deve ter em relação a Deus. A imagem proposta por Jesus é obviamente negativa, reforçada no final do v. 5, e mostra que o homem deve, sim, temer a Deus e a sua punição. Esta punição está relacionada, a meu ver, com uma clara divisão do homem em corpo e alma, na relação entre "matar o corpo" e "matar a alma" e "lançar no inferno" demonstrada neste versículo. Ao comentar sobre a divisão do homem em corpo e alma, Calvino assim se manifesta:


Estou abordando, apenas de leve, estes assuntos que mesmo os escritores profanos exaltam magnificamente, com estilo e expressão mais explêndidos. Contudo, entre leitores piedosos será bastante um simples lembrete. Ora, se a alma não fosse algo essenciado, distinto do corpo, a Escritura não ensinaria que habitamos casas de barro e que na morte migramos do tabernáculo da carne, despojamo-nos do que é corruptível para que, por fim, no último dia recebamos a recompensa, em conformidade com o que, enquanto no corpo, cada um praticou.

Ora, por certo que essas referências e semelhantes a essas, que ocorrem com freqüência, não só distinguem claramente a alma do corpo, mas ainda lhe transferem o designativo homem, indicando ser ela a parte principal. Ora,quando Paulo exorta os fiéis [2 Co 7.1] a que se purifiquem de toda impureza da carne e do espírito, ele enuncia duas partes nas quais reside a sordidez do pecado. Também Pedro, chamando a Cristo "pastor e bispo das almas" [1 Pe 2.25], teria falado improcedentemente, se não existissem almas em relação às quais desempenhasse este ofício. Nem seria procedente, a não ser que as almas tivessem essência própria, o fato de que fala acerca da eterna salvação das almas, e que ordena purificar as almas, e que desejos depravados militam contra a alma [1 Pe 1.9; 2.11]; de igual modo, o autor da Epístola aos Hebreus [13.17] declara que os pastores velam para que prestem conta de nossas almas.

Com o mesmo propósito é o fato de Paulo [2 Co 1.23] invocar a Deus por testemunha contra sua própria alma, porquanto ela não se faria ré diante de Deus, se não fosse susceptível à penalidade. Isto expressa-se ainda mais claramente nas palavras de Cristo, quando ele manda que se tema àquele que, após haver matado o corpo, pode lançar a alma na Gehena de fogo [Mt 10.28; Lc 12.5]. Ora, quando o autor da Epístola aos Hebreus distingue Deus dos pais de nossa carne, como sendo o Pai dos espíritos, não poderia ele afirmar de modo mais claro a essência das almas.

Além disso, a não ser que as almas liberadas dos cárceres dos corpos continuassem a existir, seria absurdo Cristo representar a alma de Lázaro a desfrutar de bem-aventurança no seio de Abraão, e a alma do rico, por outro lado, destinada a horrendos tormentos [Lc 16.22,23]. Paulo confirma isso mesmo, ensinando que peregrinamos distanciados de Deus durante o tempo em que habitamos na carne; desfrutamos de sua presença, porém fora da carne. E, para que não me alongue mais em matéria de forma alguma obscura, acrescentarei apenas isto de Lucas [At 23.8]: ele menciona entre os erros dos saduceus o fato de não crerem na existência de espíritos e anjos.

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 1, pp. 181-182)


(para ler o trecho completo da opinião de Calvino, clique aqui)

O corpo é mortal, a alma, não, e o inferno aqui é Geena, o vale da desolação de Jerusalém (o vale de Hinnom) relacionado com o culto ao deus pagão Moloque no passado, em que crianças eram sacrificadas vivas pelos judeus ímpios numa fogueira erguida em torno de uma estátua de latão do referido deus (2 Reis 16:3, 2 Crônicas 28:3). Para evitar que se ouvisse os gritos das crianças quando eram sacrificadas, os adoradores de Moloque tocavam tambores, chamados, em hebraico, de toph (תּף ), de onde vem o outro nome do vale, Tofete, onde as mesmas abominações eram praticadas (Jeremias 7:31-32). Depois do retorno do exílio babilônico, esta área foi destinada a ser um depósito de lixo da cidade, onde eram realizadas, também, algumas execuções, e representava um ambiente nocivo e pestilento, onde não raro, havia fogo queimando os restos putrefatos, daí a idéia de "inferno" que era tão clara para os ouvintes das duras palavras de Jesus. Insisto, entretanto, que o que não pode se perder nas discussões a respeito desta passagem é o temor de Deus, que é enfatizado pelo próprio Jesus ao finalizar a frase chamando a atenção para este dado importante do relacionamento com Deus (v. 5). Muitos comparam o temor com o medo, o pavor, mas deve-se ressaltar que mesmo o medo pode ser visto de maneira negativa ou positiva. Negativa, quando se trata de uma fobia, um pavor injustificado diante das circunstâncias; e positiva, quando se trata da preservação da vida. Assim, certos medos que nos acometem a todos têm uma ligação muito forte com o instinto de sobrevivência, como o medo do escuro, das serpentes, das feras, por exemplo. É neste sentido que o temor a Deus, a meu ver, deve ser entendido, como um alerta, uma advertência sobre o perigo de se não obedecer aos muitos avisos que Ele nos dá sobre nossa sobrevivência espiritual. Estranho seria se Deus não alertasse o pecador e, depois, o punisse sem qualquer advertência prévia.

Jesus prossegue sua pregação num estilo que lembra mais uma compilação do Sermão da Montanha de Mateus 5-7, criticando a ansiedade em relação à vida, insistindo que o cuidado de Deus basta para que o homem viva uma vida de paz (vv. 6-7). Convoca os seus ouvintes à fidelidade, dizendo que quem o confessasse diante dos homens também seria confessado por Ele diante dos anjos de Deus, e se o negassem, também seria negado (vv. 8-9). No versículo seguinte, Jesus fala que toda palavra contra ele será perdoada, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo, não. O que seja a blasfêmia contra o Espírito Santo tem sido questionado há milênios, com as mais diferentes versões. O "pecado imperdoável" é tema dos três evangelhos sinóticos (Mateus 12:31-32, Marcos 3:28-30, Lucas 12:10), e está relacionado especificamente ao Espírito Santo. Considerando que o ministério do Espírito Santo é convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo (João 16:8), tenho para mim que a blasfêmia contra Ele está relacionada com esta função que lhE é privativa. Não creio que se trate, própria e especificamente, de resistir ao Espírito Santo ou de extingui-lo. Aos tessalonicenses, Paulo recomenda que não extingam o Espírito (1 Tess. 5:19), que é um versículo isolado, sem um contexto maior que o defina, mas que, aparentemente, diz respeito aos crentes que se afastam da influência do Espírito Santo, do louvor e da adoração a Deus mediados pelo Espírito, mas não cometem um pecado imperdoável. Já Estevão, quando discursa no Sinédrio, acusa os judeus de sempre resistirem ao Espírito Santo (Atos 7:51). Entretanto, a sua prisão foi tramada por judeus leais ao Sinédrio que, exatamente, não conseguiram resistir "à sabedoria e ao Espírito com que falava" (Atos 6:10). Como Lucas também escreveu o livro de Atos, se fosse este o caso, ele certamente teria dito que ali se tratava da blasfêmia contra o Espírito Santo. Diante desta dificuldade interpretativa, pode ser que o pecado imperdoável seja uma versão mais forte (e combinada) de extinguir e resistir ao Espírito Santo, mas este é realmente um mistério que persiste até hoje no meio cristão. Deve-se ter em conta, entretanto, que Jesus está falando isto num contexto histórico muito bem definido. Assim, me parece que a idéia da Bíblia do Peregrino seja a que mais se aproxima de uma possível conclusão: "Blasfêmia contra o Espírito Santo, nesse contexto, parece significar a rejeição obstinada do seu testemunho a favor de Jesus, pelo qual a pessoa se fecha ao perdão que Jesus oferece". Russel Shedd vai um pouco além, considerando que o pecado imperdoável significa: "1) Rejeitar as mais claras provas de que as obras de Jesus que revelam a aproximação do Reino de Deus, foram feitas pelo poder do Espírito Santo; 2) Alegar que pertencem ao diabo. É sinal de endurecimento tão completo, a ponto de não existir nenhuma esperança de arrependimento e conversão (cf. Hb 6.4-6; 10.26-31); o pecador torna-se incapaz de reconhecer ou distinguir entre o divino e o diabólico". E Jesus termina este trecho de sua pregação reforçando exatamente o papel do Espírito Santo quando os cristãos fossem perseguidos: que não se preocupassem, porque o Espírito lhes diria o que deveriam falar diante das autoridades políticas e religiosas (vv. 11-12).

O v. 13 marca uma interrupção do discurso de Jesus quando um homem se destaca da multidão e lhe pede que ordene a seu irmão que divida com ele sua herança, ao que Jesus lhe respondeu que Ele não era juiz nem partidor de bens materiais e políticos entre os homens (v. 14). Em geral, os rabinos decidiam questões de partilha de bens herdados por irmãos segundo Deuteronômio 21:15-17, e o homem queria uma decisão favorável a ele sem levar em consideração o direito de seu irmão, o que revela a sua visão de Jesus como um líder político, dotado de poder automático que àquele homem, em especial, não interessava saber de onde vinha, desde que o Mestre atendesse aos seus interesses. É interessante comparar esta atitude com a do centurião romano (Lucas 7:1-10), que, querendo o bem do outro, via em Jesus um poder extraordinário para as coisas espirituais, e não materiais. Diante disto, a seguir, Jesus censura este apego ao materialismo, aos bens deste mundo, em detrimento dos bens espirituais futuros (v. 15) que podem não ser tão futuros assim, contando-lhes a parábola do rico que construiu um celeiro para si, crendo que seria suficiente para garantir-lhe uma vida e, principalmente, uma velhice farta e sossegada (vv. 16-21). De nada adiantaria fazer isto, se naquela noite lhe pediriam a alma. Certamente se referia também ao homem que queria a partilha dos bens com o irmão. De que adiantaria receber todos os bens, se naquela noite a sua alma seria pedida, pelo que Jesus conclui: "Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus " (v. 21).

Em seguida, Jesus retoma o tema da ansiedade pela vida, num discurso muito semelhante ao do Sermão de Montanha de Mateus 5 a 7. Nos vv. 22 a 34, Jesus chama a atenção dos seus ouvintes para a perda de tempo que é se preocupar com os bens desta vida, com o que comer, o que vestir, e se esquecer de que é Deus quem os sustenta (v. 24). De nada adianta andar ansioso pelas coisas aparentemente grandes da vida, se nem as pequenas conseguimos controlar (v. 26). Inquietar-se pelo que devemos comer ou beber (v. 29) é coisa de pagãos, não de crentes que vivem na fé de que seu Pai sabe do que eles necessitam (v. 30). Portanto, o reino de Deus deve ser buscado em primeiro lugar, e as demais coisas lhes serão acrescentadas (v. 31). A solicitude pelas coisas materiais não se justifica na vida presente, pois os cristãos vivem na presença e na esperança de uma vida que está além da compreensão deste mundo, portanto, eles devem fazer caridade, pois o seu tesouro está nos céus (v. 33-34). A ordem de Jesus ("vendei os vossos bens e daí esmola" – v. 33) contrasta com a teologia da prosperidade que prega exatamente o contrário "comprai os vossos bens e ajuntais tesouros", talvez porque quem a defende não compreedeu bem o que Jesus quis dizer com "Não temais, ó pequenino rebanho, porque o vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino" (v. 31). Aqui temos de novo o temor, como não-temor, porque Jesus está se referindo ao seu "pequenino rebanho", aquelas pessoas que decididamente resolveram segui-lo sem impor condições e, por isso, nada têm a temer. Jesus lhes conta então a parábola do servo vigilante (vv. 35-40), sobre o servo fiel que espera diligentemente a volta do seu senhor, para que não seja pego desprevenido quando ele regressa. Indagado por Pedro sobre se esta parábola se dirigia apenas aos discípulos ou a todos (v. 41), e Jesus não lhe responde diretamente, mas com outra parábola muito parecida, reforçando a idéia do "mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo" (v. 42), em contraste com aquele que abusam do poder que lhes foi delegado e crêem que tudo podem fazer na ausência do mestre (v. 45). Ao primeiro, lhe serão confiados todos os bens (v. 44); e o segundo será punido e lançado junto com os infiéis (v. 46), sendo punido com muitos açoites (v. 47). Jesus faz uma ressalva para aquele que "não soube a vontade de seu senhor e fez coisas dignas de reprovação", o qual "levará poucos açoites" (v. 48), o que abre uma exceção para quem ignorava a vontade do seu senhor. Significaria isto que "Deus não leva em conta os tempos da ignorância" (Atos 17:30)? Que "poucos açoites" seriam estes? Estas são questões de difícil interpretação. Russel Shedd diz que "o contraste é feito entre os líderes irresponsáveis (vv. 45-47) e os crentes mal instruídos que viveram no egoísmo e duvidaram das promessas gloriosas; todos receberão o justo castigo no tribunal de Cristo (cf. 2 Co 5.10). Maior privilégio demanda maior responsabilidade". Talvez "responsabilidade" seja a palavra-chave para se entender este versículo. Quanto maior o conhecimento de Deus, maior a responsabilidade do crente no uso e no compartilhar dos dons que Deus lhe deu.

Por fim, Jesus continua na sua linha dura de discurso, dizendo que veio para lançar fogo sobre a terra e que Ele queria que já estivesse a arder (v. 49). Tudo indica que Ele está se referindo ao Espírito Santo, com que batizaria os crentes, junto com fogo, conforme Lucas já tivera oportunidade de relatar nos dizeres de João Batista (Lucas 3:16), após a sua morte, ressurreição e ascensão aos céus. É o fogo do juízo, que cabe ao Espírito Santo convencer o homem (João 16:8). Jesus se refere, em seguida, ao batismo de sangue a que ainda devia se submeter (v. 50), e que não traria paz à terra, mas divisão (v. 51). Após sua morte e ressurreição, o povo judeu, e, por conseqüência, o mundo todo veria famílias divididas entre aqueles que creram em Jesus e os que não creram (vv. 52-53). Lucas termina o capítulo 12 com Jesus dizendo que todos que estavam ali e o ouviam sabiam como interpretar os sinais do tempo, para saber se haveria bom ou mau clima, mas não sabiam discernir os sinais espirituais de um novo tempo que estava se instaurando na Terra (vv. 54-56). Era tempo, portanto, de pôr-se de acordo com Deus, como faria toda pessoa que tivesse pouca ou nenhuma razão num caso que fosse apresentado ao juiz. Tão logo pudesse, deveria fazer um acordo com a parte contrária, nem que fosse no caminho para a audiência com o juiz (vv. 57-59). Assim, os ouvintes de Jesus deviam se apressar e fazer um acordo com Deus, o Justo Juiz (Salmo 7:11, Jeremias 11:20, 2ª Timóteo 4:8). Jesus era (e continua sendo) o caminho para a paz com Deus (João 14:6).

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