quarta-feira, 30 de julho de 2008

De pedágio em pedágio - 2

(atualizado em 01/07/2017)

(este blog foi encerrado em 02/02/2018 - nos despedimos neste artigo)

Reparei que muitas pessoas chegam a este blog através do Google (obrigado pela visita!), pesquisando por alternativas que permitam fugir dos preços escandalosos dos pedágios da Rodovia Castello Branco, e outros que procuram saber quantos pedágios existem na Raposo Tavares, especialmente entre Itapetininga e Ourinhos, onde eles (ainda) não existem, e no trecho Bauru - Santa Cruz do Rio Pardo - Ourinhos - Assis - Presidente Prudente, que já foi privatizado em 17/03/09 para a concessionária CART, o que tornou a viagem entre Ourinhos e São Paulo ainda mais cara (veja a comparação mais abaixo). 

Em relação a este último trecho, clique no mapa abaixo para ter uma noção de onde estão as novas praças de pedágio que proporcionam esta nova despesa aos cidadãos que já pagam imposto adoidado:






Veja agora os valores que incluem a SP 225 e a SP 327 (Bauru-Piratininga-Santa Cruz do Rio Pardo-Ourinhos), estradas que ligam o final da Castello Branco a Ourinhos, e também o trecho da Raposo Tavares até Presidente Epitácio:

SP 225 - km 251 - R$ 5,50 - Piratininga
SP 225 - km 300 - R$ 5,20 - Santa Cruz do Rio Pardo
SP 327 - km 014 - R$ 6,40 - Ourinhos
SP 270 - km 413 - R$ 7,60 - Palmital
SP 270 - km 454 - R$ 7,90 - Assis
SP 270 - km 512 - R$ 6,40 - Rancharia
SP 270 - km 541 - R$ 6,50 - Regente Feijó
SP 270 - km 590 - R$ 8,50 - Presidente Bernardes
SP 270 - km 639 - R$ 6,40 - Caiuá

Os valores acima são cobrados nos dois sentidos (interior e capital). Motocicletas também pagam pedágio, na metade do valor em cada local acima. Na dúvida, consulte-os pelo telefone 0800-773- 0090 ou pelo site deles.

Neste trecho (Santa Cruz do Rio Pardo - Ourinhos - Assis - Presidente Prudente - Presidente Epitácio), infelizmente, não há como escapar dos pedágios, salvo no trecho entre Assis e Presidente Prudente, onde você tem a opção de não pagar nada entrando na SP-284 em Assis, tomando a direção de Paraguaçu Paulista.

A distância entre Assis e Presidente Prudente é praticamente a mesma indo pela SP-270 ou pela SP-284, só que nesta última você não precisa pagar nenhum pedágio.

É só entrar na SP-284 no trevo de Assis/Londrina/Maracaí/Paraguaçu Paulista e tomar a direção desta última cidade, depois você passará por Quatá, João Ramalho, Rancharia e Martinópolis, onde a rodovia termina e se encontra com a SP-425 (Rodovia Assis Chateaubriand) que está quase toda duplicada na direção de Presidente Prudente.

Ambas as estradas (SP-284 e SP-425) estão em boas condições de conservação, mas existe o inconveniente de um alto tráfego de caminhões, que já descobriram a opção mais barata e não têm nenhum constrangimento de escolher essas vias sem pagar pedágio.

Também preferem essas rodovias um alto número de carros particulares com placas de Presidente Prudente e de outras cidades do Pontal do Paranapanema. Se você, como eles, não se incomoda com o tráfego intenso, é só tomar as precauções necessárias de segurança e você economizará R$ 20,80 em pedágios na ida (ou na volta). Com a vantagem de conhecer cidadezinhas do interior bem agradáveis, com ótimas opções de serviços, por este percurso.

No trecho São Paulo - Ourinhos, entretanto, considerando que todo cidadão tem o direito de opor-se à cobrança abusiva de pedágios, e procurar maneiras lícitas e econômicas de desviar deles, resolvi escrever uma espécie de manual de sobrevivência a essa tunga indecente, que conseguiu piorar (a partir de 07/07/14) com o novo pedágio no km 135 da Raposo Tavares (em Alambari), que agora cobra absurdos R$ 7,80 nos dois sentidos. 

Até julho de 2014 se cobrava R$ 8,80 apenas no sentido capital, e não há registro de que alguém (nem o Ministério Público) tenha se disposto a investigar mais essa vergonha paulista.

Primeiramente, é necessária uma comparação das tarifas de pedágio nas duas rodovias em questão, considerando apenas os veículos de passeio, em valores de julho de 2017 (atualizamos em 01/07/17 - a atualização da tarifa é anual, todo mês de julho):



1) Rodovia Castello Branco:

1.a) Sentido Interior

km 18 – Alphaville – R$ 4,10
km 33 – Itapevi – R$ 8,20
km 111 – Boituva – R$ 9,10
km 158 – Quadra – R$ 12,50
km 208 – Serra de Botucatu – R$ 12,50
km 278 – Iaras – R$ 8,50

SP 225 - km 300 - R$ 5,20 - Santa Cruz do Rio Pardo
SP 327 - km 014 - R$ 6,40 - Ourinhos

Total Interior = R$ 66,50


1.b) Sentido Capital

SP 327 - km 014 - R$ 6,40 - Ourinhos
SP 225 - km 300 - R$ 5,20 - Santa Cruz do Rio Pardo

km 278 – Iaras – R$ 8,50
km 208 – Serra de Botucatu – R$ 12,50
km 158 – Quadra – R$ 12,50
km 111 – Boituva – R$ 9,10
km 74 – Itu – R$ 11,00
km 20 – Alphaville – R$ 4,10

Total Capital = R$ 69,30

Total ida e volta = R$ 135,80




2) Rodovia Raposo Tavares:

2.a) Sentido Interior

km 46 – Vargem Grande Paulista– R$ 8,80
km 111 – Araçoiaba – R$ 3,70
km 135 - Alambari - R$ 7,80

Total Interior = R$ 20,30

2.b) Sentido Capital

km 135 – Alambari – R$ 7,80
km 111 – Araçoiaba – R$ 3,70
km 79 – Alumínio – R$ 8,40

Total Capital = R$ 19,90

Total ida e volta = R$ 40,20




Percebe-se, portanto, que a economia de pedágios, para quem troca a Castello Branco pela Raposo Tavares no trecho São Paulo - Ourinhos, pode chegar a R$ 95,60, valor que pode ser utilizado para completar um tanque de álcool, por exemplo, sobretudo na região de Ourinhos e Assis, onde o etanol tem o preço mais em conta. 

Existe, ainda, uma ótima opção para quem viaja em direção à capital e tem moderada pressa em chegar. Para evitar os lentos trechos urbanos de Alumínio e Mairinque (atravessar São Roque, Vargem Grande e Cotia está mais fácil agora), o motorista pode entrar no acesso (Rodovia José Ermírio de Morais - "Castellinho") à Castello Branco que existe no km 91 da Raposo Tavares, em Sorocaba. 

São 18 km livres de pedágio até a Castello (só se paga R$ 6,20 na Castellinho no sentido inverso, daí não ser vantagem fazer o caminho contrário). Depois, ao invés de pagar R$ 8,40 em Alumínio, se pagam R$ 11,00 em Itu e R$ 4,10 em Alphaville, o que pode eventualmente favorecer quem tem mais pressa e menos paciência. 

Para conferir e obter os valores atualizados das tarifas de pedágio no estado de São Paulo, consulte o site da ARTESP .

A Raposo Tavares é uma boa opção para quem sai para viajar com tranquilidade, de preferência durante o dia, e fora dos horários de pico. Além do trecho inicial ser bastante movimentado até Cotia, existe um tráfego intenso de caminhões nos 50 km que separam Sorocaba de Itapetininga, que não incomoda mais já que a rodovia foi completamente duplicada entre as duas cidades.

O problema não é tanto o número de caminhões, que não é tão grande assim, mas a sanha arrecadadora do governo do Estado mancomunado com as concessionárias, que fazem de tudo para você pegar a caríssima Castello Branco.

Na Raposo Tavares como um todo, evite toda e qualquer tentação de desrespeitar os limites de velocidades ou ultrapassar na faixa dupla, pois a chance de você ganhar uma multa é muito grande. A Polícia Rodoviária está sempre de tocaia esperando os motoristas incautos e impacientes.

Lembre-se, também, que desde 1º de novembro de 2014, as multas por ultrapassagem proibida estão muito mais pesadas.

Aliás, eu nunca vi os policiais multando caminhões por estarem abaixo da metade da velocidade permitida para o local (100 km/h em quase toda a Raposo, salvo o trecho duplicado entre Sorocaba e Itapetininga, que - inexplicavelmente - tem limite de 80 km/h - preste bastante atenção).

Portanto, resista bravamente à tentação de ultrapassar na faixa dupla. Tome cuidado também com os radares escondidos. Não são muitos, mas sempre estão por lá.

A estrada está em boas condições em quase toda a sua extensão. O trecho entre Ourinhos e Piraju foi recapeado em 2010, mas as chuvas desde então deixaram a pista consideravelmente avariada especialmente nos cerca de 35 km entre Piraju e Ipaussu, o que revela o descaso do Governo do Estado com o dinheiro público, ao pagar dezenas de milhões de reais por um serviço que não durou nem um ano (o trecho foi recapeado algumas vezes desde então e já está bem transitável, mas tenha especial cuidado na estação das chuvas).

Evite passar à noite por este trecho em especial e tenha muito cuidado, porque alta velocidade e desatenção podem comprometer a segurança e a manutenção do veículo. Outro trecho que continua significativamente comprometido é entre Angatuba (km 204) e Itaí (km 275).

Recomenda-se atenção redobrada nas terceiras faixas (há poucas, em geral com dificuldades) e nos trevos em elipse (alongados), não só com os muitos treminhões de cana-de-açúcar como com os muitos buracos que eles sempre deixam por lá. Ali, em especial, jamais ultrapasse com faixa dupla, mesmo com total visibilidade, pois há sempre um policial à espreita.

Com relação a postos de serviço, há boa oferta de combustível, mas nem tanto de serviços e alimentação para uma parada mais agradável. Não espere encontrar um Rodoserv na Raposo Tavares. Não há, infelizmente. 

O melhor posto é o antigo Tibiriçá, no km 244, na entrada para Paranapanema, que foi comprado pela rede Graal e recentemente reformado, e agora se chama Graal Holandês.

Não se sabe o gênio do Graal que trocou o brasileiríssimo nome Tibiriçá (com décadas de tradição) para Holandês, provavelmente em homenagem ao distrito de Holambra II que fica a 10km dali, ao qual você pode fazer uma visita agradável se não estiver com muita pressa.

Nada contra os holandeses, diga-se de passagem, mas se a rede Graal quisesse homenageá-los era só colocar um moinho na frente do posto (o que já foi feito, inclusive), onde também se pode comer um lanche ou fazer uma refeição em condições razoáveis (embora os preços, antes justos, agora seguem o padrão Graal de inflação). 

Pelo menos tiveram a boa ideia de montar uma pequena loja de produtos típicos da Holanda, com artigos simpáticos e preços convidativos.

Outras boas opções para se alimentar, além do Tibiriçá (vai demorar até eu aceitar chamá-lo de Graal Holandês), são o também antigo Borssato (agora se chama Siquelero, no km 159, nas duas direções), o Piraju (km 325) e um restaurante caipira no km 352, entre Chavantes e Ipaussu (que tem uma comida honesta, mas com pouca personalidade e variedade).

O Posto Jurumirim, no km 309, de gloriosa tradição nos anos 60 e 70, antes do prolongamento da Castello Branco, passou por uma longa reforma, e é uma opção razoável para suas refeições. A cozinha do Jurumirim é visivelmente limpa (você pode vê-la através das vitrines dos amplos balcões), mas os banheiros são sofríveis. E o atendimento é dos piores.

Se você faz questão de banheiros rigorosamente limpos, o melhor, disparado, é o do Trevo-Itaí (km 280), onde a comida é boa também, embora sem muita variedade. No quesito "banheiro limpo", destaca-se também o Tibiriçá, recentemente reformado. O Jurumirim chegou a ter banheiros limpos logo após a reabertura, mas ultimamente tem deixado muito a desejar.

Quanto ao abastecimento de combustível, aproveite o Carrefour do Iguatemi - Esplanada Shopping de Sorocaba (km 100 – do lado do Extra e do Íbis Hotel, a 200m do trevo - preste muita atenção nas placas indicativas, a construção das marginais da Raposo em Sorocaba faz com que o acesso seja feito pela via marginal muito antes do shopping). Lá a qualidade é garantida a bons preços, o que não ocorre em toda a rodovia, e você ainda tem a opção do próprio supermercado e do shopping todo para lazer e alimentação.

A melhor parte de viajar pela Raposo Tavares é a paisagem. O rio Paranapanema serpenteia a rodovia a partir do km 230, onde ele ainda é uma bela várzea e ali existe uma vila de pescadores que vendem peixes à beira da estrada.

Depois vêm as grandes represas das usinas de Jurumirim, Piraju e Chavantes, num trecho onde o tráfego é bastante leve e o espetáculo da natureza é garantido. Por isso, também, é melhor passar pela Raposo durante o dia, para apreciar o que ela tem de melhor.

Ah, se puder, dê uma entrada em Piraju, que é uma típica cidadezinha do interior muito agradável, com uma pequena usina hidrelétrica (e a correspondente represa) no meio da cidade. A ponte bucólica passa por cima da barragem. Vale a pena a visita!

À noite, as condições de visibilidade não são tão boas entre Angatuba e Itapetininga, há muitos ônibus escolares e de trabalhadores rurais, e ainda existe a possibilidade de atropelar um tamanduá na pista, como indica o texto anterior deste blog. Melhor preservar a fauna e curtir a viagem tranquilamente.

Pagando menos, de preferência. Até porque eu não sou contra pedágios; só quero que cobrem um preço justo, o que não acontece no Estado de São Paulo.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Bandeira 2 para o tamanduá

Infelizmente, tenho que colocar a foto ao lado, tirada hoje, para tentar, mais uma vez, chamar a atenção para mais uma tragédia ecológica brasileira. 

Eu já escrevi um texto neste blog ("Uma bandeira para o tamanduá"), denunciando o massacre que os tamanduás-bandeira estão sofrendo na Rodovia Raposo Tavares (SP-270). 

Depois daquela data (28 de abril de 2008), eu já passei umas 3 vezes por esta estrada, ali no trecho entre Paranapanema e Itapetininga, e constatei que os pobres animais continuam sendo atropelados sem dó. 

Reclamei junto ao DER-SP e obtive resposta deles, dizendo que colocariam placas sinalizando a passagem de animais silvestres, entre Paranapanema e Angatuba. 

Obviamente, é uma medida mínima, mas pelo menos um órgão do governo respondeu. 

Passei ontem e hoje por lá, e verifiquei que existem duas placas, conforme as fotos abaixo. 

A primeira no km 240 (sentido capital), e a segunda no km 205 (sentido interior). 

Entretanto, ali no km 216, encontrei mais um tamanduá morto, conforme as fotos que ilustram e entristecem este texto. 

Só neste ano, contei sete animais mortos, isto em poucas passagens por aquela rodovia. 

Ergo de novo esta bandeira para o tamanduá, na esperança que ele nunca entre na lista dos animais em extinção da fauna brasileira, embora esteja muito próximo disso, infelizmente.




Veja uma atualização da situação do massacre dos tamanduás-bandeira na Rodovia Raposo Tavares no texto Atropelágio.

domingo, 27 de julho de 2008

Cristianismo x Gnosticismo

Creio ser muito importante conhecer a vida e a luta dos grandes homens e mulheres que Deus levantou ao longo da História, para que o evangelho permanecesse puro e imune aos modismos e heresias que surgiram com o passar dos tempos. 

Um dos grandes Pais da Igreja se chamava Irineu, e todo cristão tem o direito (um privilégio, mais que um dever) de conhecer a sua vida e a sua obra.

Irineu nasceu em Esmirna, ou perto dali, por volta de 120 d.C. 

Na juventude, foi discípulo do grande bispo Policarpo de Esmirna, com quem aprendeu os ensinamentos do apóstolo João, de quem Policarpo havia aprendido diretamente o evangelho. 

Por volta do ano 150, Irineu foi enviado à outra extremidade do Império Romano, na Gália (hoje França), onde estabeleceu-se em Lião (Lyon), sendo inicialmente presbítero e depois bispo da igreja cristã. 

Em seu livro "Contra as Heresias", atacou a heresia gnóstica e passou à história como Irineu de Lião, o grande bispo defensor da ortodoxia cristã.

Transcrevo abaixo alguns trechos do livro "História da Teologia Cristã", de Roger Olson, Ed. Vida, págs. 69/74, sobre as idéias centrais de Irineu ao atacar o gnosticismo. O texto é longo, mas vale a pena ser lido:




O ataque de Irineu ao gnosticismo não teve nada da abordagem fria e racional que as pessoas da atualidade esperariam de um bispo ou teólogo. Ele considerava o gnosticismo estulto e sinistro e queria desmascará-lo de uma vez por todas como uma corrupção completa do evangelho disfarçado em "sabedoria superior para pessoas espirituais". Para tanto, Irineu passou meses e anos estudando pelo menos vinte mestres gnósticos distintos e suas respectivas escolas. Descobriu que o mais influente era o gnosticismo valentiniano, que se tornou popular entre os cristãos de Roma mediante os ensinos de um líder gnóstico chamado Ptolomeu. Por isso, concentrou sua atenção em expor esse grupo como ridículo e falso na esperança de que todos os outros fossem esmagados com o peso dessa queda.

A abordagem de Irineu na crítica ao gnosticismo em "Contra as Heresias" foi tripla. Em primeiro lugar, procurou reduzir ao absurdo a cosmovisão gnóstica, ao demonstrar que boa parte dela era uma mitologia sem qualquer fundamento a não ser a imaginação. Essa primeira estratégia pretendia desmascarar as contradições internas do gnosticismo e sua incoerência básica. As verdades que pregava eram conflitantes entre si. Em segundo lugar, tentou demonstrar que a reivindicação dos gnósticos de ter uma autoridade que remontava a Jesus e aos apóstolos era simplesmente falsa. Finalmente, entrou em debate com a interpretação gnóstica das Escrituras e demonstrou que era irracional e até mesmo impossível.

Há várias suposições que explicam a polêmica tentativa de Irineu de desmascarar o gnosticismo. Obviamente, ele acreditava que exercia um papel e uma posição especiais, por ter sido instruído no cristianismo por Policarpo que, por sua vez, teve João como mestre. Muitos gnósticos alegavam que João fazia parte de um grupo seleto de discípulos de Jesus que receberam do Salvador "ensinos secretos" não revelados à maioria dos cristãos por não estarem espiritualmente aptos a entendê-los. Embora pudessem enxergar indícios da própria cosmovisão e evangelho nos escritos apostólicos, tinham que confiar em uma tradição oral secreta como a fonte principal de sua autoridade. Irineu deduziu que, se tivessem existido tais ensinos, Policarpo teria tomado conhecimento deles e lhe contado. O fato de nenhum dos bispos dos cristãos reconhecerem nem aceitarem esses ensinos acabou com as reivindicações dos gnósticos.

Outra suposição básica que subjazia à crítica ao gnosticismo era a de que os gnósticos seriam os responsáveis por romper a unidade da Igreja. Eram eles os cismáticos. Irineu atribuía grande valor à unidade visível da igreja, que consistia na comunhão dos bispos nomeados pelos apóstolos. Os gnósticos estavam fora dela e agiam como parasitas. Para Irineu e muitos dos seus leitores, esse era um argumento forte contra eles.

[...]

Todas as principais seitas e escolas do gnosticismo desprezavam a criação física e negavam sua origem no Deus supremo da bondade e da luz. A maioria, incluindo-se a escola de Valentino, apresentava níveis de emanações ("éons" e "arcontes" )do Deus de puro espírito e luz que gradualmente se desviavam e, de alguma forma, acabavam criando o universo material, inclusive os corpos humanos nos quais as centelhas do divino (almas, espíritos) se encontram enredadas e presas. Para rebater essa teoria da criação, Irineu afirmou a doutrina cristã de Deus como criador e redentor da existência material e da espiritual. Contra os gnósticos, citou João 1:3 e outras passagens do AT e dos apóstolos (que posteriormente seriam incluídos no NT) que tratam de Deus como o criador de todas as coisas mediante o seu Verbo e o seu Espírito e desacreditou as interpretações que fizeram das referências bíblicas aos anjos, aos poderes espirituais e aos principados, atribuindo-lhes um caráter fantasioso e absurdo.
[...]
Os gnósticos pensavam na obra de Cristo sob um prisma puramente espiritual e negavam a encarnação. Para eles, Cristo, o redentor celestial, nunca teve uma existência em um corpo humano. Ele veio pelos níveis dos "éons" e "arcontes" e apareceu na forma humana sem assumir a natureza física ou entrou no corpo de um ser humano chamado Jesus de Nazaré a fim de usá-lo como instrumento para falar a respeito da origem espiritual da alma humana. Em qualquer dessas versões da cristologia gnóstica, a obra de Cristo não requeria a encarnação. Sua missão era simplesmente revelar uma mensagem aos espíritos. A dimensão material e física não se relacionava com isso e, quando Jesus foi crucificado, Cristo não estava nele, nem com ele. Os gnósticos excluíam da sua soteriologia (doutrina da salvação) a vida e a morte histórica e física de Jesus.
Irineu procurou demonstrar que o evangelho da salvação ensinado pelos apóstolos e transmitido por eles centralizava-se na encarnação, a existência humana do Verbo, o Filho de Deus, em carne e osso. Por isso, enfatizava todos os aspectos da vida de Jesus como necessários para a salvação. A obra de Cristo em nosso favor foi muito além de seus ensinamentos e estendeu-se à própria encarnação. Para Irineu (e para a maioria dos pais da igreja depois dele) a própria encarnação é redentora e não meramente um passo necessário em direção aos ensinos de Cristo ou ao evento da cruz. Pelo contrário, a humanização do Filho de Deus - o Verbo (Logos) eterno de Deus experimentando a existência humana - é o que redime e restaura a humanidade caída se ela se permitir. Essa idéia ficou conhecida como a encarnação salvífica e foi crucial para o curso de toda a teologia depois de Irineu. É por isso que, sempre que surgia uma teologia que de alguma forma ameaçava a encarnação de Deus em Jesus, os pais da igreja reagiam tão fortemente. Qualquer ameaça à encarnação, por menor que fosse, era vista como uma ameaça à salvação. Se Jesus Cristo não fosse verdadeiramente humano bem como verdadeiramente divino, a salvação seria incompleta e impossível. A redenção, na sua inteireza, repousa na realidade do nascimento de Cristo em carne e osso, de sua vida, seu sofrimento e sua ressurreição, além do seu eterno poder e divindade.

[...]
Os gnósticos não ofereceram esperança alguma para a raça humana como um todo e nem para os seres humanos individualmente. Somente os espíritos - e assim mesmo, poucos - tinham alguma esperança de serem transformados e somente mediante a gnosis (conhecimento). Irineu implantou profundamente na consciência cristã a crença e esperança em Jesus Cristo como transformador de toda a raça humana mediante sua fusão com a humanidade na encarnação.




A questão que se levanta hoje, a meu ver, não é tanto o que é o gnosticismo em si, já que existem várias correntes gnósticas, mas como, aos poucos, boa parte das doutrinas das igrejas evangélicas atuais vai se tornando gnóstica. 

É até esperando que os seguidores de algumas religiões se considerem iluminados, alegando deter as chaves do conhecimento espiritual, como se fossem mediadores entre Deus e o homem, portadores de mensagens divinas especiais para os que os seguem. 

O problema acontece quando este fenômeno adentra nas igrejas que se dizem cristãs, quando pastores dizem ser esses mensageiros que detêm uma espécie de monopólio da revelação espiritual, como se a Bíblia e o Espírito Santo não bastassem. 

Diga-se, por oportuno, que não são os gnósticos que criaram alguma conspiração para influenciar os cristãos, mas são os cristãos que foram buscar princípios gnósticos para justificar seu pretenso saber iluminado. 

Assim, dizendo-se conhecedores de algumas doutrinas bem particulares (e esdrúxulas), que os iniciados e incautos desconhecem, apressam-se em exercer uma posição de poder que não têm, nem ninguém lhes delegou. 

Mediante rituais premeditadamente complicados (e muitas vezes, orgulhosamente secretos), desviam a atenção dos crentes do que realmente importa: a salvação pela fé em Cristo Jesus.

Parece que a simples, boa e velha mensagem do evangelho já não tem serventia para os dias atuais. 

Precisamos de mais Irineus para denunciar e condenar essa confusão generalizada entre cristianismo e gnosticismo, sob pena de chegar o dia em que não se saiba mais como distinguir um do outro.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Efêmera

Da série "propagandas que valem por uma pregação"...

Obs.: "Efêmera" também quer dizer "libélula" em Portugal.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Grandes livros - 8

"Primeiras Estórias" (Ed. Nova Fronteira, 15ª ed., 2001) é um ótimo bilhete (somente) de ida à genialidade de Guimarães Rosa. 

Pra começo de conversa, tem uma introdução magnífica de Paulo Rónai, o mais brasileiro dos húngaros (ou vice-versa), responsável, entre outras coisas, pela tradução do clássico "Os Meninos da Rua Paulo", de Ferenc Molnár, que marcou toda uma geração de brasileiros, dentre os quais este que vos escreve. 

A morte de Nemecsek foi o primeiro contato com a dita cuja que muitos - que eram garotos nos anos 70 - tiveram. 

Quanto à obra de Rosa, Rónai diz que "os temas da arte são fragmentos de vida, esses aspectos superficiais da realidade que os nossos sentidos percebem" (p. 28). 

O livro é uma seleção de contos, que apresenta ao leitor a vastidão do mundo de Guimarães Rosa. 

Mesmo aqueles que estão mais familiarizados com a vida no interior, com os grotões do Brasil, terão alguma dificuldade para entender o palavreado (e os neologismos) de Rosa, mas como alguém que se aventura num texto em idioma estrangeiro (já tendo nele alguma desenvoltura), compreenderão o que o autor quer dizer, ainda que por trás de cada palavra de Rosa se esconda outro mundo de significação, que se vale, inclusive, de estrangeirismos. 

Vez por outra, nos deparamos com palavras do francês ou do italiano, por exemplo, devidamente abrasileiradas.

O primeiro conto, "As margens da alegria" narra um Menino observando as diferenças entre a cidade grande e o seu pequeno mundo rural, numa história que vai fazer mais sentido ao ser lida em conjunto com o último conto, "Os cimos", que mostra o Menino preocupado com a doença da Mãe. 

"Famigerado" relata o medo de um doutor quando um bandido conhecido chega à sua casa. "Como um pingo no i, ele me dissolvia" (p. 57), diz o narrador, mas quando chega a hora de saber o que o meliante queria, era apenas uma dúvida sobre a palavra que dá nome ao conto, mas até chegar a este ponto, diz o doutor: "habitei preâmbulos". 

"Sorôco, sua mãe, sua filha", relata uma dessas enormes tragédias familiares que assolam os rincões do país, quando alguém padece de doença mental, sem socorro, sem ajuda. No caso, a mãe e a filha de Sorôco. Como diz o autor, "para o pobre, os lugares são mais longe" (p. 63). 

"A menina de lá" é uma pequena fábula sobre esses anjinhos que alegram os lares, em vez de procissões. Uma menina, Nhinhinha, tem o dom de realizar todos os seus desejos, mas as palavras (sempre as palavras) devem ser usadas com cuidado e parcimônia, para evitar o pior.

"Os irmãos Dagobé" são três jagunços daqueles que assustam o chamado "Brasil profundo", mas um deles é morto, deixando o clima do velório latente de vingança, e o seu assassino se oferece para segurar numa das alças do caixão. O desfecho do conto surpreende o vilarejo e o leitor. 

"A terceira margem do rio" é a estória mais conhecida do livro, sobre o pai que, esgotado, abandona a família e vai viver numa canoa no meio do rio, onde passa a girar (e rodar) toda a história de sua família, mas as águas vão e voltam, e a vida (e a desgraça) se recicla. 

"Pirlimpsiquice" é uma cómedia dos erros à la Guimarães Rosa, sobre um grupo teatral infantil que tenta manter oculto o enredo de uma peça que vão apresentar, criam um roteiro alternativo para ser divulgado, e estórias se entrelaçam e se confundem quando o grande dia chega. 

A família está presente também em "Nenhum, Nenhuma", onde a presença na casa de uma velhinha, Nenha, que era tão idosa que a memória de onde ela vinha já não se alcançava mais na família, faz com que tudo gire em torno dela, a ponto da Moça preferir não se casar com o Moço, preferindo dedicar-se a ela, sob o argumento de que "o passado é que veio a mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas, não estou sabendo decifrá-lo" (p. 101). 

"Fatalidade" começa dizendo que "a vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio" (p. 107). Um delegado de polícia recebe um homem cuja mulher está sendo assediada por um conhecido bandido das redondezas. O final se parece com muitas "fatalidades" que irrigam as páginas policiais no Brasil. 

"Seqüência" narra, por outro lado, a fatalidade do destino. Uma vaca fugitiva, que "seguia, certa; por amor, não por acaso" (p. 114), é capaz de provocar o encontro de duas pessoas que nasceram uma para a outra. 

"O Espelho" brinca com a vida, afinal "seríamos não muito mais que as crianças – o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória" (p. 126). "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo" (p. 119). 

"Nada e a nossa condição" conta a história de Tio Man'Antônio, velho fazendeiro que, após ficar viúvo e casar as viúvas, distribui as suas terras entre os trabalhadores e ajudantes que, mesmo assim, continuam a temer (e odiar) o patrão. É, no fundo, um conto sobre a ingratidão e a incerteza das relações humanas, tendo como pano de fundo uma espécie de reforma agrária voluntária. 

"O cavalo que bebia cerveja" mostra um italiano fugitivo da Segunda Guerra, com suas manias e mistérios. "Quem sou eu, quati, para cachorro me latir?" (p. 143). 

"Um moço muito branco" beira a ficção científica, com um personagem um tanto quanto extraterrestre que aparece num vilarejo perdido nos grotões do Brasil, que servem de cenário também para "Luas-de-mel", que relata um desses casamentos em que o noivo rouba a noiva segundo os estranhos costumes locais, com suas relações de autoridade familiar e comunitária sempre tão instáveis e arriscadas. 

A ingenuidade da infância é revisitada na "Partida do audaz navegante", em que, assim como em "A menina de lá", temos em Breijeirinha uma "menina de cá", que filosofa: "antes falar bobagens, que calar besteiras" (p. 169) e "o mar não tem desenho. O vento não deixa" (p. 171). 

"A benfazeja" é, para mim, o conto mais contundente, belíssimo em seu horror. 

Conta a história de três desses personagens sombrios, quase folclóricos, os excluídos e enjeitados que transitam pelos vilarejos brasileiros, carregando e compartilhando as suas desgraças, quais urubus que, ao comerem a carniça, poupam a terra dos seus males. 

A imagem parece gratuita, mas este conto realmente não é de fácil digestão, beirando uma espécie de terror sertanejo, com um final que não deixa nada a desejar quando comparado a outros contos macabros. 

"A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas" (p. 184). Brilhante! E pensar que é justamente neste conto que Guimarães Rosa escreve que "o amor é a vaga, indecisa palavra" (p. 179)... 

Já "Darandina" é a história de um louco que sobe numa palmeira após bater a carteira de alguém. É confundido com um político e, a partir daí, o mundo se transforma e a sociedade gira em torno dele. Até descobrirem que é apenas um sósia, muita gente importante se reunirá debaixo da palmeira. 

"Substância" é uma história de amor marcada pelo polvilho, que, mesmo em meio à miséria, reúne os corações e as almas abandonadas no sertão. 

"Tarantão, meu patrão" fala de um exército de Brancaleone tupiniquim, um Dom Quixote brasileiro, que leva uma caravana para uma festa, onde topa com o seu destino inexorável. 

Por fim, "Os cimos" completa, a meu ver, o primeiro conto ("As margens da alegria"), mostrando um menino estupefato com a vida, a morte, e o mundo, enfim, o próprio Guimarães Rosa e, porque não dizer, também o seu (agora maravilhado) leitor.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Arte e Cristianismo


Nelson Bomílcar escreveu um belo artigo sobre arte e religião no site Cristianismo Criativo. Sem grandes pretensões, é verdade, pois poderia se aprofundar bastante no tema, já que o Bomílcar tem autoridade e capacidade reconhecidas para tanto.

Creio que ele quis apenas apresentar o tema, como uma introdução mesmo, e provocar o debate, no que, a meu ver, teve êxito. 

Arte, por si só, já é um assunto vastíssimo, para não dizer infinito. 

Que o homem sempre quis encontrar uma válvula pictórica de escape para se expressar, as cavernas pré-históricas estão aí para comprovar. 

Chamar isso de "veia artística" é que varia de cultura para cultura, de pessoa para pessoa, de geração para geração. 

Afinal, os movimentos artísticos se sucedem e, muitas vezes, se negam e se contradizem conforme cada era da humanidade, num ir-e-vir sem fim.

Na Bíblia, as expressões artísticas sempre tiveram o seu lugar. 

Primeiro, se trata de literatura, de crônicas e romances que foram passados de geração a geração, além dos livros poéticos, como Salmos e Cantares. 

O canto e a música parecem configurar a arte por excelência, biblicamente falando. 

Não por acaso há um livro com 150 salmos que originalmente eram cantados, e alguns deles fazem alusão a instrumentos, cânticos e danças. 

O Salmo 150 parece ser o mais representativo quanto a este aspecto. 

Paulo também enfatiza a importância dos primeiros cristãos falarem entre si com salmos, hinos e cânticos espirituais (Efésios 5:19 e Colossenses 3:16). 

Quando esteve em Atenas, demonstrou conhecimento dos poetas gregos, aplicando-os à sua pregação (Atos 17:28). 

Quanto a outras formas de arte na Bíblia, a construção do tabernáculo no deserto envolveu centenas, talvez milhares de artífices de toda espécie para montá-lo e decorá-lo, tudo sob o comando de Moisés (Êxodo 26 em diante). 

O mesmo aconteceu com o primeiro templo, sob Salomão (1 Reis 6 e 7), o mesmo que compara os meneios dos quadris de Sulamita com jóias feitas por um artista (Cantares 7:1). 

Curiosamente, o Apocalipse revela um fim para as artes na destruição da "mítica" Babilônia (Apocalipse 18:21), embora a descrição do céu (nos capítulos 21 e 22) revele muita beleza em arquitetura grandiosa (e preciosa), fechando o ciclo que remete à Criação do homem, esculpido por Deus com as próprias mãos (Gênesis 2).

Os judeus eram muito mais cuidadosos, entretanto, em relação à escultura e à pintura, para não desobedecerem ao mandamento divino que proibia representar Deus em forma de alguma imagem humana ou da natureza, mesma objeção que acompanhou o começo do cristianismo que, alguns séculos depois, admitiu ambas as artes no lado ocidental (latino), ficando o oriental (grego) apenas com a iconografia pictórica. 

Daí porque boa parte do acervo dos melhores e maiores museus do mundo é composta por pinturas e esculturas com inspiração religiosa, embora não se deva esquecer, também, que a Igreja institucionalizada tenha funcionado como um bloqueio a outras tantas expressões artísticas que contrariavam os seus interesses. 

Censuras e boicotes não são novidades na história do mundo, e nem sempre é tão simples ou pacífico separar o sagrado do profano, ainda que o belo os defina. 

Afinal, toda uma era da humanidade (no Ocidente) foi vivida debaixo do domínio pleno da Igreja Católica Romana, sendo que o período mais intenso dessas realizações (com Michelangelo e a Capela Sistina, por exemplo) coincide com a Reforma Protestante, que, por um lado, é iconoclasta, renegando a representação religiosa mediante, principalmente, a escultura, mas por outro lado, favorece o desenvolvimento de outras formas de expressão artística (como a formação das línguas nacionais européias), que assim vão paulatinamente se apartando da sombra da Igreja. 

É claro, também, que existem inúmeras expressões artísticas em todos os povos do mundo, seja no Oriente, na África, ou na América pré-colombiana. Quem tem a oportunidade de conhecer o Museo del Oro em Bogotá, por exemplo, é apresentado a um mundo fascinante, em que a riqueza (literal e figurada) da arte dos povos andinos é uma explosão de sensibilidade e expressividade que deve ter assustado os colonizadores espanhóis, ao se depararem com uma civilização que, em muitos aspectos, era bem mais desenvolvida que eles. Talvez tenham dizimado esses povos não só cobiça, mas por medo e espanto ante o que aquela arte representava. O símbolo, às vezes, pode ser aterrador.

No Brasil, as expressões artísticas também foram acomodadas debaixo do guarda-chuvas da Igreja Católica. 

Uma mistura de raças e povos tão rica como a nossa foi, pouco a pouco, se amalgamando e se "civilizando", por assim dizer, através de uma incorporação adaptativa aos rituais religiosos. 

Dizer que o barroco é exagerado é redundante, mas este período no Brasil conseguiu romper todos os limites da extravagância (só pra ser redundante de novo), e os anjos de Aleijadinho com as suas feições negras, servem também como o retrato de uma época em que se procurou abrasileirar a arte fortemente influenciada pelos europeus. 

A igreja evangélica no Brasil é fenômeno relativamente recente, e trouxe uma série de influências de norte-americanos e europeus. 

Estes eram mais clássicos, aqueles mais despojados, mas cada um com os seus preconceitos.

A diversidade de origem das igrejas evangélicas, que frutificaram do trabalho missionário estrangeiro, implicou numa diversidade, também, de estilos e comportamentos. 

Até pouco tempo atrás, tanto o rock norte-americano como os ritmos afro-brasileiros eram considerados do capeta, por exemplo. 

Hoje, boa parte das orquestras sinfônicas brasileiras é composta por evangélicos, e a Assembléia de Deus tem sido reconhecida como boa formadora e fornecedora de instrumentistas. 

A Veja inclusive já publicou uma matéria sobre esse fenômeno, em junho de 2007 (para lê-la, clique aqui). 

No campo brasileiro das artes em geral, entretanto, não se percebe uma penetração cristã, talvez porque, até as décadas de 1970 e 1980, os evangélicos brasileiros ainda estavam mais preocupados em se firmar, em enfrentar o preconceito e, muitas vezes, a perseguição que sofriam. 

Neste aspecto, gente do meio - como o próprio Nelson Bomílcar e tantos outros -, foi muito importante. 

A partir da música, abriram um leque de possibilidades de expressão artística que ainda não foi devidamente explorado pelos cristãos brasileiros. 

É claro que a Igreja é um microcosmos da nossa sociedade, em que apenas uma ínfima minoria tem acesso às mais variadas formas de arte, não só na apreciação e consumo, como também na produção, mas cabe a cada um de nós divulgar, sempre que possível, um determinado espetáculo, um filme, um programa na TV, um livro, uma mostra, enfim, algo que ajude não só a Igreja, mas toda a comunidade, a animar-se a fazer, beber, comer, dormir, enfim, viver a arte na sua plenitude.


Carta aos Romanos - 23

Assim, no início do segundo capítulo de Romanos, Paulo conclui que o homem, qualquer que seja, é indesculpável por seus atos. É curioso como o argumento anterior parecia servir apenas aos gentios, aqueles que não possuíam a Lei para indicar o que é o pecado a eles. É imperdoável aqueles que julgam, pois eles também cometem os mesmos erros, sejam eles quem for.

E o versículo 2 atesta para todos que o juízo de Deus é contra aqueles que praticam as coisas ditas no capítulo 1. Portanto, pelo versículo 1 e o 3, podemos concluir que o juízo de Deus é contra todos. Aqui Paulo já dá indícios de como resolver esta questão, pois no versículo 4 vemos que a benignidade de Deus conduz a pessoa ao arrependimento. É interessante notar como este arrependimento não tem como causa algo interno ao homem, mas na própria benignidade divina.

Quem despreza sua própria benignidade (versículo 4), se esquece que é a benignidade de Deus que o conduz ao arrependimento. Então, por que não sem bom, para que aqueles quem julgamos não se arrependam também? Se somos inflexíveis ao julgar (versículo 5), só poderemos obter um julgamento mais duro para nós mesmos.

Os versículos 6 e 7 podem aqui dar a entender que somos salvos por obras. Por isto é importante ler com cautela este trecho. Podemos ver pelo versículo 5, que o foco do julgamento é o coração ("a tua dureza e teu coração impenitente"). Por outro lado, no versículo 7, define-se os salvos como aqueles que "com perseverança em favor o bem, procuram glória, e honra e incorrupção". Isto nos lembra da parábola:

(Lc 8:15) Mas a que caiu em boa terra são os que, ouvindo a palavra com coração reto e bom, a retêm e dão fruto com perseverança.

Não é o coração ainda, o que está em foco aqui? Somente um coração decidido a mudar, pode produzir frutos com perseverança. E condenação aos que são duros de coração. Não são as obras em si, que estão em foco, mas as intenções de cada pessoa. Posteriormente, o apóstolo vai especificar como o coração, aqui a intenção, age no processo de salvação.

É no versículo 9 que Paulo menciona o judeu como alvo da ira divina também, algo que estava subentendido no versículo 1. Como o judeu, que conhecia a lei, poderia ser julgado da mesma forma que um grego? Como ele poderia receber as mesmas bênçãos? Como não haveria acepção de pessoas quando a maior parte delas não conhecia Deus? Paulo então declara:

(Rm 2:12) Porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão julgados.
(Rm 2:13) Pois não são justos diante de Deus os que só ouvem a lei; mas serão justificados os que praticam a lei
(Rm 2:14) (porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem por natureza as coisas da lei, eles, embora não tendo lei, para si mesmos são lei.
(Rm 2:15) pois mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os)


Os que possuem a lei em seu coração, são aqueles que serão justificados. E quem pensava que a lei só poderia ser conhecida através das Escrituras, Paulo aqui atesta que há aqueles que não tinham a lei escrita, mas as mostravam em seus corações. A lei divina não está limitada a um povo, mas se estende a todos. E ainda mantendo o raciocínio do coração gerando boas obras, Paulo aponta leis neste coração, como a origem dos atos morais de gentios. Isto responde bem às consciências de alguns, que justificam sua falta de fé apontando para uma suposta injustiça da parte de Deus, de não se revelar universalmente, mas apenas a um povo eleito. Porém, Deus já antes os responde com o propósito da eleição de Israel:

(Êx 19:6) e vós sereis para mim reino sacerdotal e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel.

Já que Israel teria a responsabilidade de ensinar os outros povos, aquilo que já conheciam de forma imperfeita (mas eficaz), sendo assim sacerdotes.

E então Paulo passa a dar mais atenção agora aos judeus, e a seu estado. Pois muitos judeus achavam que ao praticar as obras da lei, já estavam justificados. Mas eles pregavam as obras da lei, e cometiam delitos contra a mesma lei. Então Paulo diz algo que é válido para qualquer pessoa que se julgue religiosa:

(Rm 2:23) Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?
(Rm 2:24) Assim pois, por vossa causa, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios, como está escrito.


Quem prega que haja uma lei moral a ser cumprida, deve observá-la também. Este é o grande problema tanto dos fariseus, quanto de muitos cristãos hoje, que se jubilam na lei, mais especificamente em alguns pontos da lei que julgam mais importantes, e ainda se dizem pecadores. São estes os que difamam o nome de Deus. Se a lei deve ser cumprida integralmente, então os defensores desta tese não podem se considerar pecadores.

A questão é tão séria, que a circuncisão, sinal dado ao povo de Deus, se transforma em nada quando há a transgressão da lei. E a incircuncisão se transforma em circuncisão quando há a observância desta lei. O que está claro com tudo isto, é que a observância da lei mostra quem é na verdade os circuncidados. Assim como a circuncisão mostra quem é o judeu, as boas obras, circuncisão do coração, mostra o verdadeiro fiel.

domingo, 20 de julho de 2008

Grandes canciones - 3

SOLO LE PIDO A DIOS

Letra e música: León Gieco
Cantam: León Gieco e Mercedes Sosa


Solo le pido a Dios
que el dolor no me sea indiferente,
que la reseca muerte no me encuentre
vacío y solo sin haber hecho lo suficiente.

Solo le pido a Dios
que lo injusto no me sea indiferente,
que no me abofeteen la otra mejilla
después que una garra me arañó esta suerte.

Solo le pido a Dios
que la guerra no me sea indiferente,
es un monstruo grande y pisa fuerte
toda la pobre inocencia de la gente.

Solo le pido a Dios
que el engaño no me sea indiferente,
si un traidor puede mas que unos cuantos,
que esos cuantos no lo olviden fácilmente.

Solo le pido a Dios
que el futuro no me sea indiferente,
desahuciado está el que tiene que marchar
a vivir una cultura diferente.

Solo le pido a Dios
que la guerra no me sea indiferente,
es un monstruo grande y pisa fuerte
toda la pobre inocencia de la gente.

sábado, 19 de julho de 2008

Justiça no pensamento aristotélico - 6

A distinção que realmente importa não é tanto a que Aristóteles vai desenvolver, dividindo a justiça em distributiva e corretiva, esta última exercendo-se sobre transações voluntárias e involuntárias, e as involuntárias sendo categorizadas em clandestinas e violentas. O que seria absolutamente essencial e inovador, marcando um corte epistemológico radical, foi a distinção entre a justiça geral ou universal (matéria que seria, a partir daí, submetida à Ética e da Política) e a justiça particular (um novo domínio que seria submetido ao Direito).

A justiça universal corresponderia, na visão aristotélica, ao exercício da virtude completa e perfeita. É, por um lado, virtude completa porque é exercida pelo indivíduo em relação a si mesmo e ao próximo. É importante fazer uma ressalva neste momento: quando se fala em justiça exercida em relação a si mesmo, não se trata propriamente de justiça, pois ninguém pode dizer que está sendo justo em relação a si mesmo. Neste caso, não se trata de justiça, mas apenas de uma disposição de caráter. A justiça é sempre observada em relação ao outro, mesmo a partir de uma perspectiva íntima, auto-centrada, que tem necessariamente uma correlação, uma contrapartida em outro ser humano.

Já a justiça particular refere-se à distribuição de honras e bens, e também diz respeito a relações interpessoais. Este tipo de justiça se manifesta na observância da lei e da igualdade. Para Aristóteles, o justo particular reflete-se na igualdade e o igual, como vimos anteriormente, é o meio termo entre o “mais” e o “menos”, eqüidistante, daí a sua insistência quanto ao “justo meio”.

Necessário é, pois, nos determos um pouco mais sobre a questão da justiça particular. A justiça particular é, por assim dizer, uma relação, e uma relação entre pessoas e “coisas”, que assume uma dimensão proporcional, e, nesse caso específico, de proporcionalidade geométrica. O filósofo não economizou exemplos matemáticos, que mostram o seu domínio da matéria e, sobretudo, a influência que recebeu dos pensadores gregos anteriores:
“Os matemáticos chamam esta espécie de proporção de geométrica, pois é na proporção geométrica que a soma do primeiro e do terceiro termos está para a soma do segundo e do quarto assim como um elemento de cada par de elementos está para outro elemento. A justiça distributiva não é uma proporção contínua, pois seus segundo e terceiro termos – alguém que recebe parte de alguma coisa e uma participação na coisa – não constituem um mesmo elemento.
O justo nesta acepção é portanto o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade. Neste último caso um quinhão se torna muito grande e o outro muito pequeno, como realmente acontece na prática, pois a pessoa que age injustamente fica com um quinhão muito grande do que é bom e a pessoa que é tratada injustamente fica com um quinhão muito pequeno. No caso do mal o inverso é verdadeiro, pois o mal menor é considerado um bem quando comparado com o mal maior, já que o mal menor deve ser escolhido de preferência ao maior, e o que é digno de escolha é um bem, e o que é mais digno de escolha é um bem ainda maior.” [1]
Vê-se, pois, que a idéia de proporcionalidade domina a questão da justiça distributiva defendida por Aristóteles. Chega-se à conclusão, pois, de que no pensamento aristotélico, a ação justa é um justo meio (com o perdão da redundância) entre a injustiça cometida e a injustiça sofrida. Embora seja complexa esta asserção, não deixa de ser um caminho para se entender a visão do filósofo sobre a questão.

De qualquer maneira, é de fácil compreensão verificar que a justiça está no meio, enquanto as injustiças estão nos extremos. A justiça pode então ser considerada como sendo uma disposição que dota o homem justo da capacidade de ser um reto repartidor, quer entre outros, quer entre si e os outros: exigindo exatamente o que lhe é devido, e atribuindo a cada um o que é seu. A injustiça será, por conseguinte, o inverso, sendo injusto o homem que age de maneira contrária a este equilíbrio.

Existe controvérsia na doutrina quanto à nomenclatura da justiça corretiva. Valendo-se do original grego (díkaion diorthotikón), o mestre Ferraz Junior prefere chamá-la de justiça diortótica, assim definindo-a:

“A justiça diortótica é a segunda espécie da justiça particular. É a que realiza a igualdade nas transações individuais, mas, diferentemente de distributiva, não leva em conta os sujeitos da relação igualitária, mas sim as coisas que devem ser igualadas. Em outras palavras, a justiça diortótica, ao contrário da justiça distributiva, à qual importa o mérito das partes, visa apenas a medir impessoalmente o dano e a perda, supondo iguais os termos pessoais. A tradução de Ross revela que esta espécie de justiça atua “in transaction between man and man” (É.N., V, 2, 1131ª), ao contrário da justiça distributiva que regula a participação nos bens comuns à sociedade ou a um grupo, entre seus membros (É.N., V, 7, 1131b30).
A justiça diortótica intervém nas transações individuais, voluntárias ou involuntárias no sentido de consentidas e não consentidas. As primeiras são as que os atos constituidores são, em sua origem, fruto de desejo deliberado das partes: é o caso da compra e venda, da locação, do depósito, da caução, etc. As segundas são as que os atos constituidores são, em sua origem, contra a vontade deliberada da parte lesada. As transações involuntárias, por sua vez, subdividem-se em clandestinas, em que a oposição da parte lesada é presumida desde o início da ação delituosa, mas só se manifesta posteriormente – é o caso do furto, do adultério, do envenenamento, do falso testemunho, etc. – e violentas, em que a oposição da parte lesada é clara e patente na origem do delito – é o caso das vias de fato, do seqüestro, assassinato, roubo a mão armada, mutilação, injúria, etc.” [2]
Prossegue o mestre Ferraz Junior ensinando que “o termo corretivo, se usado, não deve ser confundido com punitivo (como entende Gomperz: “korrektive oder strafende”), mas sim compreendido como retificador”[3]. Aristóteles ensina, no seguinte excerto, que este tipo de justiça desempenha um papel corretivo nas transações entre os indivíduos, repartindo na proporção dos interesses em conflito, em forma de proporção aritmética, própria dos homens, tarefa essa que incumbia ao juiz:

“A espécie restante de justiça é a corretiva, que tanto se manifesta nas relações voluntárias quanto nas involuntárias. Esta forma do justo tem um caráter diferente da primeira, pois a justiça na distribuição dos bens públicos é sempre conforme à espécie de proporção mencionada acima (também no caso em que se faz a distribuição dos fundos públicos esta distribuição será conforme à mesma razão que se observa entre os fundos trazidos para um negócio pelos vários parceiros); a injustiça contrária a esta espécie de justiça é a que viola esta proporcionalidade. Mas a justiça nas relações privadas é de fato uma espécie de igualdade, e a injustiça nestas relações é uma espécie de desigualdade, mas não conforme á espécie de proporção mencionada acima, e sim conforme à proporção aritmética. Com efeito, é irrelevante se uma pessoa boa lesa uma pessoa má, ou se uma pessoa má lesa uma pessoa boa, ou se é uma pessoa boa ou má que comete adultério; a lei contempla somente o aspecto distintivo da justiça, e trata as partes como iguais, perguntando somente se uma das partes cometeu e a outra sofreu a injustiça, e se uma infligiu e a outra sofreu um dano. Sendo portanto esta espécie de injustiça uma desigualdade, o juiz tenta restabelecer a igualdade, pois também no caso em que a pessoa é ferida e a outra fere, ou uma pessoa mata e a outra é morta, o sofrimento e a ação estão mal distribuídos, e o juiz tenta igualizar as coisas por meio da penalidade, subtraindo do ofensor o excesso do ganho (o termo “ganho” se aplica geralmente a tais casos, ainda que ele não seja um termo apropriado em certos casos – por exemplo, no caso da pessoa que fere – e “perda” se aplica à vítima; de qualquer forma, uma vez estimado o dano, um resultado é chamado “perda” e o outro é chamado “ganho”). O igual, portanto, é o meio-termo entre o maior e o menor, mas o ganho e a perda são respectivamente maiores e menores de modos contrários; maior quinhão de um bem e menor quinhão de um mal são um ganho, e o contrário é uma perda; o meio-termo entre eles, como já vimos, é o igual, que chamamos de justo; a justiça corretiva, portanto, será o meio-termo entre perda e ganho.” [4]
No entender de Aristóteles, a justiça corretiva seria o intermediário entre a perda e o ganho, cabendo ao juiz restabelecer a igualdade. O seu pressuposto é uma situação fática, moral ou jurídica, da qual foi tirada o equilíbrio , que deve ser restabelecido para conduzir as partes, dentro daquilo que for possível, ao status quo ante, ou, diante da impossibilidade do retorno à situação anterior, cabe ao juiz aplicar a penalidade ou arbitrar o valor indenizatório.

Para tanto, Aristóteles diz que as transações que são objeto da justiça corretiva podem ser voluntárias (como no caso da locação e do depósito, por exemplo) ou involuntárias (que podem ser clandestinas, como no caso do furto ou do adultério, por exemplo; ou violentas, como no caso do homicídio ou do seqüestro).

É nesse momento da obra de Aristóteles que vemos a sua referência ao dinheiro. Retornando à pergunta que já nos fizemos anteriormente, como podemos comparar coisas distintas? A proporcionalidade também é referida por Aristóteles na justiça corretiva, ao afirmar que “a reciprocidade proporcional se efetua através de uma conjunção cruzada”[5], o que foi facilitado pela adoção do dinheiro como elemento comparativo, e nos dizeres de Aristóteles, “é por isso que todos os serviços permutados devem ser comparáveis de algum modo; com esta finalidade foi instituído o dinheiro, e em certo sentido ele se tornou um meio-termo, pois ele mede todas as coisas, e conseqüentemente o excesso e a falta”[6] .

Neste particular, comenta Bittar:

“Como representante da procura, o dinheiro tem função convencional relevante por presidir as trocas. Não sendo algo que existe por natureza, mas como fruto da criação e do poder normativo humano, deriva da lei (nómos), da qual se extrai sua denominação (nómisma). A artificialidade da moeda deve-se ao fato de ter sido ela adotada pela utilidade, podendo ser igualmente substituída por outro padrão, qualquer que fosse, adotado pelos homens que da moeda fazem uso.” [7]
Entretanto, há quem veja na justiça diortótica, ainda, espaço para subclassificá-la em justiça comutativa, que deve viger nas relações voluntárias, em a igualdade aritmética (o justo é igual) é a regra, e os objetos intercambiáveis devem possuir o mesmo valor. Haveria, para esses doutrinadores, também uma justiça judicial, que seria aquela que deve vigorar nos conflitos submetidos a julgamento, aplicável a violações, em que se busca uma paridade entre o efetivo dano e a reparação possível, e neste caso o juiz restabeleceria a igualdade por meio da pena.

Ademais, importa ressaltar uma redescoberta fulcral de Aristóteles (que não foi o primeiro a compreendê-la, constituindo tal noção um patrimônio praticamente universal, tanto das civilizações pré-clássicas e clássicas como das orientais e do extremo oriente), que é a divisão da justiça política em natural e positiva, que nada mais representa do que a clássica dicotomia entre direito natural e direito positivo. O primeiro é universal, valendo igualmente em toda a parte, independentemente de opinião; o segundo é, de início, indiferente, mas uma vez estabelecido, torna-se obrigatório. O exemplo que Aristóteles dá, quanto ao último, é o das penas. Estas podem divergir segundo tempos e lugares, mas sempre se apresentam com sentido e funções semelhantes.

Por fim, Aristóteles fala na justiça doméstica, que nada mais é do que aquela manifestada com relação às coisas que nos dizem respeito mais intimamente, nos pertencem, e exatamente por isso não é incondicional. O filósofo ainda a divide em justo despótico, conjugal e paternal, reguladora das relações domésticas, ou seja, aqueleas que envolvem os familiares e os escravos da casa.


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[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 199
[2] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2003, 2ª ed., págs. 187/188
[3] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Op. cit., pág. 187
[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 198/9
[5] ARISTÓTELES. op. cit., pág. 202
[6] idem
[7] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2005, 4ª ed., pág. 104

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