segunda-feira, 14 de julho de 2008

Diário de um lunático - 8

25/05/2007

Oi, gente!

Eu sou o João, irmão do Pedro, e vou aproveitar que ele anda meio distraído ultimamente pra escrever no diário dele. Tenho certeza que, se ele percebesse que eu fiz isso, não veria problema algum. O problema mesmo é que ele não vai perceber nunca. É que somos gêmeos, e às vezes não sei se eu sou ele, se ele sou eu, enfim, vira uma confusão na minha cabeça que eu nem sei quem sou. Sorte minha que ele é tão "deslocalizado" quanto eu. É bem capaz dele achar que foi ele quem escreveu isso aqui. É que, às vezes, eu me pego com o RG dele e nem reparo que estão me chamando de Pedro e o meu nome é João. Deve ser um caso raro de confusão de personalidades na maternidade. Ah, deixa pra lá, senão eu me esqueço do que quero contar.

Ontem, sábado, eu encontrei com um pessoal da igreja protestante perto lá de casa, moçada bacana com quem eu cresci. Eles estavam meio revoltados com alguma coisa que, a princípio, não percebi bem o que era. Parecia que não queriam que uma determinada lei fosse aprovada no Congresso. Pelo menos era isso que estava escrito nas camisetas e nas faixas. Como eram todos muito legais, eu nem entendi direito contra o quê eles protestavam, mas como a companhia deles é sempre muito agradável, montei numa kombi e quando vi, já estava na frente do Congresso Nacional. Sim, eu moro em Brasília, e maio não é um bom mês pra protestar, mesmo que você seja protestante. Aliás, nenhum mês é bom para protestar na Capital. Não tem gente disposta a isso. Afinal, como é bem sabido, Brasília não tem esquina, nem calçada. Quando os presidentes ficavam lá no Catete, no Rio, certamente eles ouviam alguém passar na calçada gritando; "Getúlio Vargas filho da... ". Também.... as janelas davam pra rua, né. Aqui, na imensidão dessa Esplanada, qualquer grito se perde na secura do ar. O som não se propaga no vácuo, aprendi no cursinho. Já que dizem que o Brasil é um deserto de homens e de idéias, não adianta nada gritar em Brasília, já que os cérebros são meio ocos por aqui. Pelo jeito, as idéias também têm ojeriza ao vácuo.

Bem, voltemos ao protesto. Vi um monte de crentes, todos tentando parecer bem vestidos (mas não conseguindo) e refrescados (debaixo daquele sol?), e tinha um cara com um megafone lá na frente, camisa e gravata empapadas de suor (o paletó já tinha sido aposentado, como manda o figurino da capital), que parecia ser o líder da manifestação. Depois de uma gritaria e uns aleluias que seguiram o que parecia ser uma oração do megafone abafado pelo burburinho, o cidadão que o empunhava se identificou como o Pastor Tal, que estava ali em nome de Jesus. Poxa, que legal, alguém vai protestar contra a corrupção, a miséria e o desgoverno em frente do Congresso, e isso em nome de Jesus, pensei eu. Já engatei uns aleluias para acompanhar os meus amigos, que estavam ali, todos eufóricos. Não sou muito letrado na Bíblia, mas lembrei na hora de Jesus expulsando os vendilhões do templo. Assim, de repente, me senti investido de uma missão sagrada e nem prestei muita atenção no que o tal pastor falava. Nem o megafone devia ouvi-lo, ao que tudo indicava. Até que, lá pelas tantas, meus ouvidos começaram a ter vida independente, e talvez pela proximidade, sussurraram aos meus neurônios: "escuta bem o que ele tá falando". Apartei-me um pouco da histeria dos meus amigos, e me concentrei naquele megafone esquisitão tentando decifrar os chiados de LP antigo e arranhado. Demorei pra entender que o motivo daquela manifestação toda era barrar um projeto de lei que, segundo berrava o tal pastor, criminalizaria quem dissesse que os gays estão pecando quando fazem, bem, aquilo que eles fazem entre quatro paredes (problema - ou solução - deles, né?!). Ao perceber que era disso que se tratava aquela balbúrdia toda, foi como se um balde de água gelada caísse na minha cabeça, embora não aliviasse o suor que já me incomodava. Até então, pensava que eu estava imbuído da sagrada comissão de combater a corrupção e o descaso com os mais pobres, mas agora eu me via num batalhão preocupado em poder criticar os gays abertamente. Ora, eu até conheço o Januária, que eu pensava que tinha ganho esse apelido por talvez ser da cidade de mesmo nome lá de Minas, mas só depois fiquei sabendo que era por ele ser, pelo menos até onde se saiba, o único gay da repartição, e ainda torcedor do Vasco numa terra de rubro-negros. Agora, porque é que um crente vai querer ter o direito de dizer que ele é pecador? Não somos todos pecadores, afinal? E o Januária é tão na dele, não incomoda ninguém...

Alguma coisa estava errada naquele protesto. Não conseguia olhar mais para o pastor. Disfarçadamente, virei para o outro lado, olhando em direção da Torre de TV. Foi quando eu tive, acho eu, uma epifania, pois um vulto branco, luminoso, apareceu no meu campo de visão, e me perguntou: "Você acha que Jesus faria esse protesto?". Foi tudo muito vapt-vupt, questão de apenas ouvir esta frase rápida, e, cá entre nós, credito esse vulto mais a um ofuscamento pelo sol implacável do maio brasiliense. A frase, entretanto, acredito que ouvi. Teria sido alguém que percebeu meu desconforto e me dirigiu a palavra sem que eu notasse? Teria alguém pego a kombi por engano também? Pode ser, mas o que importa é que eu realmente fiquei pensando se Jesus não tinha nada mais importante pra fazer do que ficar protestando contra um projeto de lei que o impedisse de falar que homossexualismo é pecado. Bem, até onde me lembro, Jesus era amigo de pecadores, e dialogava em paz com os rejeitados de sua época: publicanos, prostitutas, leprosos, mulheres e samaritanos. Os romanos, Calígula que o diga, não eram assim, digamos, muito machos. Engraçado, não me lembrei de nenhuma passagem dos evangelhos em que Jesus invocasse o direito de poder dizer que toda esta galera era pecadora. Aliás, todas as leis eram contra ele e os seus direitos foram tão desrespeitados que ele pagou o que não devia com a cruz. No dia-a-dia, a sua presença bastava, a sua autoridade era suficiente, e o seu "negócio" era anunciar o evangelho sem negociá-lo. Parece que o negócio de alguns pastores hoje é outro. Agora, cá entre nós, precisa mesmo de toda essa papagayada? Não dava só pra pregar o evangelho? Ou é essencial aos pastores poderem atacar os gays?

Diante disso tudo, achei melhor inventar uma desculpa qualquer (o sol, como sempre...) e sair de fininho. Vai que o Januária me vê depois no Jornal Nacional.... melhor não correr o risco de arranjar um inimigo na repartição. Os outros colegas já não são confiáveis.... no caráter, esclareço. Agora, o que cada um deles faz entre quatro paredes é problema deles, e se Jesus quiser encontrá-los e alcançá-los, tenho certeza de que não vai haver Sodoma e Gomorra que o impeçam, muito embora o Pastor Tal faça de tudo para afastá-los do evangelho da graça de Deus. Pelo menos, foi essa tal graça que eu sempre ouvi dos meus amigos crentes. Acho que eles estão meio sem graça de voltar à graça. Então, voltei pra casa pra curtir o que restava do domingão, mas uma pulga incomodava minha orelha: por que os crentes se sentem tão ameaçados pelos gays? Fetiche? Sei não...

Falta de fé, ou graça, talvez....

João (ou Pedro... ah... sei lá!)

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