quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Pequeno balanço olímpico

A Olimpíada terminou no último domingo, e já dá para fazer um pequeno balanço do desempenho brasileiro em Pequim-2008. Algumas primeiras conclusões:

1) Uma pena que as meninas do futebol não tenham ganho a medalha de ouro. Talvez seja o caso de repensar algumas atitudes, como as excessivas firulas e o descontrole de algumas jogadoras, como a Marta, que só não foi expulsa contra a Alemanha por um descuido (ou excessivo respeito) da árbitra. A gente gosta e quer jogo bonito, mas dá pra combinar com um pouco de seriedade e pragmatismo;

2) A seleção masculina de futebol foi até longe demais com o Dunga, que está mais para Zangado ultimamente, e o totalmente-fora-de-forma-física-e-técnica Ronaldinho. Do Alexandre Pato, é melhor não esperar nada, pois jogador, mesmo jovem, que assim que chega a ter um destaque, liga pra uma atriz global pra ver se encaixa um namoro, certamente não entendeu o que é ser um profissional de alto nível. Que compre uma chácara em Pato Branco, monte uma cidade cenográfica para sua atriz, contrate a Bozena para o talk-show local, e sejam todos muito felizes para sempre; só deixem o futebol para quem realmente se interessa pelo esporte.

3) As meninas do vôlei finalmente desencantaram. Aquele 24x19 contra a Rússia em Atenas-2004 ainda vai ficar entalado na garganta por longas décadas, mas elas exorcizaram o fantasma do amarelão que as assombrava. Acho que finalmente poderei assistir as partidas delas ao vivo. Antes, eu só me preocupava com o resultado. Ah... confesso... não vi a final ao vivo..... o trauma de telespectador olímpico de Atenas ainda era muito presente....

4) Os rapazes do vôlei decepcionaram. Aliás, já vinham decepcionando desde o ano passado, com todo aquele imbróglio envolvendo o corte do Ricardinho (já comentado aqui). Pelo jeito, o problema deles era grana mesmo, tanto que o presidente da CBV, Ary Graça, já havia até estipulado o prêmio de R$ 4.700.000,00 pela medalha de ouro, com bastante antecedência, para evitar a polêmica que havia atingido a seleção antes do Pan do Rio. Por mais que tentem negar, o fato é que Ricardinho fez falta, não só com sua genialidade como levantador, mas também – pasmem! – pela sua capacidade de liderar e mexer com o grupo. Nada contra o Marcelinho, que até jogou bem, só que não dá pra ele atingir o nível do Ricardinho, seja como jogador, seja como líder. É óbvio que o Ricardinho não é nenhum santo, e o seu temperamento explosivo contribuiu para a divisão do grupo, mas o Bernardinho errou ao não saber administrar a situação. Talvez tenha esticado demais a corda, e ela se rompeu, infelizmente. Pior pra todos nós.

5) As moças e o rapaz da ginástica artística precisam de tratamento psicológico urgente. A atitude deslumbrada do Diego Hypólito, ainda na fase classificatória, prenunciava a tragédia. Parecia que ele achava que a medalha de ouro já estava garantida, e era tudo uma questão de tempo. Ria compulsivamente e chamava: "Que venham os leões!". Pois é... os leões vieram e o devoraram, justo no passo final da sua rotina, levando sua esperança e sua arrogância para o chão. Já as meninas foram a Pequim, ao que parece, para chorar. Jade Barbosa era uma manteiga derretida.... qualquer coisa, ela abria o bocão. Então, se é pra chorar, que chorem aqui no Brasil mesmo, e tanto eles como nós passamos menos vergonha.

6) Maurren Maggi foi só superação. Medalha de ouro merecida numa prova tão simples (e com tão poucos concorrentes) que a gente fica sem entender por que é que não produzimos mais campeões nos saltos. Pelo menos, Maurren teve a consciência e a concentração necessárias para uma campeã. Caprichou no primeiro salto e meteu pressão nas demais saltadoras. Um salto cerebral, sem dúvida, que merece todos os elogios.

7) Jadel Gregório, por sua vez, comprovou que, como saltador, ele é um ótimo animador de torcida. Verborrágico, é especialista em soltar bravatas sobre seu desempenho, que, infelizmente, ficam apenas no mundo da fantasia. Se falasse menos e saltasse mais, pelo menos uma medalha de bronze dava pra beliscar. E olha que o sueco campeão olímpico de Atenas nem apareceu, devido a uma contusão alguns dias antes dos Jogos iniciarem.

8) César Cielo mostrou que, se dependesse do apoio do COB e da CBDA, não teria ganho nada em Pequim. Sorte dele que tem pais que investiram no próprio filho. Esta é uma medalha da família, e do país também, mas não das organizações que dirigem a natação e o esporte olímpico.

9) O Brasil revelou toda a sua incompetência (pra dizer o mínimo) na administração dos mundos e fundos que são dirigidos ao esporte olímpico, pelas muitas leis de incentivo. Há estatísticas que variam de R$ 692 milhões a R$ 1,4 bilhão de dinheiro público que foi destinado às várias confederações para se prepararem para Pequim. Onde é que foi parar este dinheiro é que é o x da questão. Certamente, não foi parar na preparação do Eduardo Santos, judoca que perdeu na repescagem e pediu desculpas, chorando, aos seus pais, que, sofridamente, haviam investido na sua carreira. Nem na preparação de Rosângela Conceição, a Zanza, que, muito dignamente, representou o país na luta greco-romana. Enquanto Carlos Arthur Nuzmann dirigir o COB como se fosse um happy-hour num boteco do Leblon, o Brasil vai ter que amargar muitas decepções como as que tivemos em Pequim.

10) A cobertura esportiva foi um capítulo à parte. O Sportv e a ESPN Brasil empataram em revezamento dos piores comentaristas esportivos. Um desastre total. A Globo despejou toda a sua tradicional empáfia. A única vantagem que se pode antever na cobertura da Record, nos próximos Jogos Olímpicos de Londres – 2012, é o fato de não termos mais que tolerar as idiotices de Galvão Bueno nem as crônicas jadebarbosianas do Pedro Bial. Talvez seja o caso da gente já iniciar um abaixo-assinado pra pedir ao Bispo Macedo para não contratá-los jamais.

11) Deixo as meninas do basquete fora de qualquer consideração. Com a baderna instalada na CBB, já foi um feito elas terem se classificado para as Olimpíadas, coisas que os rapazes não conseguem desde Atlanta-1996. Enquanto não reconstruírem a casa do basquete no Brasil, é melhor considerá-lo como um esporte não-olímpico, pelo menos por aqui. Evita maiores decepções....

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Eclesiastes - capítulo 10

Leitura anterior: Eclesiastes - capítulo 9

Eclesiastes está chegando ao final, e o discurso do Pregador se encaminha para uma conclusão. Existe algum sentido na vida, afinal? Se existe, qual é? 

Até o capítulo 9, o Pregador veio desconstruindo uma série de certezas que pensamos ter sobre a vida. 

Ironicamente, a única certeza que temos é a morte. O senso comum nos mostra que as mesmas coisas acontecem para justos e injustos, e que crentes e descrentes se equiparam nas circunstâncias cotidianas da vida, sejam elas tristes ou felizes. 

O sol nasce para todos, indistintamente. O capítulo 10 marca uma transição, em que o Pregador compara a sabedoria e a estultícia. "Estultícia" é um sinônimo mais formal de "tolice". 

No capítulo 2, ele já tentara se embriagar para que a estultícia se apoderasse dele (v. 3) e deixara claro que o que acontece ao sábio, também acontece ao estulto, ao tolo (vv. 15-16), mas agora é hora de marcar posição, e, para tanto, ele faz uma comparação muito simples, dizendo que a estultícia na vida de quem busca a sabedoria é como a mosca morta que estraga o perfume. 

A exemplo do que nos aconselham Jesus (Lucas 21:36), Paulo (1 Coríntios 16:13), e Pedro (1 Pedro 4:7 e 5:8), devemos estar sempre vigilantes não só quanto ao mal em si, mas também quanto às tolices, as bobagens, que somos tentados a fazer, aceitar ou vivenciar todo dia. 

Aquelas coisas pequenas, que aparentemente não têm nenhuma importância, podem estragar não só o nosso dia, mas às vezes uma vida toda. As versões católicas são mais felizes na tradução deste v. 1 (que é uma continuação de 9:18) para o português:

"Uma mosca morta estraga um perfume, uma migalha de insensatez conta mais que muita sabedoria." (Bíblia do Peregrino)

"Moscas mortas infectam e fazem fermentar o ungüento do perfumista; uma pequena tolice pesa mais que a sabedoria, que a glória." (Tradução Ecumênica)

Dietrich Bonhoeffer, pastor (e grande teólogo) alemão, que foi preso por conspirar contra Hitler, e depois enforcado a mando deste, alguns dias antes da guerra acabar, chamou a atenção para a estultícia, a tolice, que aos poucos foi se impregnando num povo tido como sábio, que é o povo alemão, a ponto de resultar na gigantesca tragédia que foi a Segunda Guerra Mundial, onde o mal parece ter chegado ao apogeu na humanidade. 

No início do seu cativeiro, em 1943, ele escreveu um texto intitulado "Sobre a tolice" (para acessar o texto completo, clique aqui), em que diz o seguinte:
A tolice é um inimigo mais perigoso do bem do que a maldade. Contra o mal se pode protestar, é possível desmascará-lo, pode-se, em caso de necessidade, impedi-lo com o uso da violência. O mal sempre já traz em si o germe da auto-desagregação, pelo fato de deixar ao menos um mal-estar na pessoa. Contra a tolice não temos defesa. Nada se consegue com protestos nem com violência; argumentos não adiantam; a fatos que contradizem o próprio preconceito não se precisa dar crédito – em tais casos o tolo até mesmo se torna crítico – e se esses fatos são incontornáveis, simplesmente se pode pô-los de lado como casos isolados sem significado. iferentemente do malvado, o tolo está completamente satisfeito consigo mesmo; ele até mesmo se torna perigoso, pois facilmente se sente provocado e passa à agressão. Por isso, recomenda-se mais cautela em relação ao tolo do que ao mau. Nunca mais tentaremos persuadir o tolo com argumentos; é inútil e perigoso.

(BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão. Ed. Sinodal, 2003, p. 33)

Hoje, olhando pelo retrovisor da História, ficamos com a impressão de que Bonhoeffer lutou contra um mal muito visível, um monstro com enormes garras, chamado nazismo, e nos esquecemos facilmente de que uma série de pequenas permissões à estultícia de um "salvador da pátria" personificado em Hitler, fez com que uma imensa tragédia se abatesse sobre toda a humanidade, e não só a Alemanha. 

E tudo começou de maneira bem simples, contaminando e corrompendo a civilização alemã a ponto de levá-la à barbárie da guerra e do holocausto. 

Talvez seja o caso de procurarmos identificar, atualmente, quais são as pequenas idiotices que toleramos na Igreja, imaginando-as inofensivas, quando têm não o poder de destruí-la, mas a possibilidade concreta de solapar muitas das bases em que nos firmamos ao longo dos séculos.

Desta maneira, o capítulo 10 de Eclesiastes é um libelo contra a estultícia, a tolice, a idiotice, que, por pequenas que sejam, ameaçam o caminho da sabedoria de qualquer um. 

Os três primeiros versículos anunciam a tônica de todo o capítulo. A questão do lado direito (para onde se inclina o sábio) e do lado esquerdo (para onde vai o tolo), longe de ser um preconceito contra os canhotos, refere-se a uma simbologia bíblica que associa a bondade divina ao lado direito e a punição ao lado esquerdo, como no dia do juízo final previsto por Jesus em Mateus 25:32-46. 

Para o Pregador, o tolo pode até tentar parecer sábio (como geralmente acontece), mas chega um determinado momento em que toda a sua estultícia é exposta publicamente, conforme diz o v. 3. 

Controlá-la, dominá-la, escondê-la, exige um esforço gigantesco que geralmente não resiste às pressões da vida. 

Salomão ainda dá um conselho prático para aqueles que se deparam com alguém em posição superior (v. 4), dizendo que a serenidade aplaca a ira do governador. 

Isto não o impede de ver que, como também costuma acontecer, muitas vezes o tolo está em posição de honra, enquanto o rico (que pode ser entendido tanto em sentido literal como figurado) está colocado em posições mais baixas (vv. 5-7). 

O v. 8, que diz que "quem abre uma cova nela cairá, e quem rompe um muro, mordê-lo-á uma cobra", pode ser interpretado no mesmo sentido, por exemplo, de Provérbios 26:27 ("O que faz uma cova cairá nela; e a pedra voltará sobre aquele que a revolve"), ou seja, quem faz o mal, o mal receberá, que podemos comparar ao que Paulo escreveu em Gálatas 6:8 - "Porque quem semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas quem semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna". 

Os versos seguintes seguem a mesma linha. Quem arranca pedras, provavelmente para uma briga (v. 9), pode ser atingido por elas, e é possível ligar esta idéia aos "tempos" de Eclesiastes 3:5, "tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de abster-se de abraçar". 

O v. 10 chama a atenção para as pessoas que se fiam no seu conhecimento acumulado, que nem sempre é sabedoria. 

Assim como o ferro embotado, que não tem o corte afiado, é a sabedoria daquele que acumulou conhecimento mas não se preocupou em colocá-lo em prática, nem em revisitá-lo constantemente e desenvolvê-lo. 

O v. 11 revela que, como toda cidade importante daquela época, em Jerusalém também havia "encantadores" de serpente, que não eram propriamente bruxos ou feiticeiros, mas artistas populares que ganhavam a vida divertindo o povo nas ruas com suas técnicas de domar as serpentes. 

De nada adiantaria exibir esta habilidade e ser mordido por elas. Por analogia, de nada adianta a sabedoria se ela não serve para instruir, prevenir, planejar, construir, e, principalmente, se defender dos perigos da vida. 

É interessante constatar que, alguns séculos depois, diante da destruição iminente de Jerusalém (e do reino de Judá) pela Babilônia, Jeremias profetizava da parte de Deus: "Porque eis que envio para entre vós serpentes, áspides contra as quais não há encantamento, e vos morderão, diz o SENHOR" (Jeremias 8:17).

A partir do v. 12, o Pregador volta a criticar a estultícia com mais veemência. "Nas palavras do sábio, há favor", ou seja, há graça, pois o sábio, numa visão neotestamentária, pode ser comparado ao homem que segue o conselho de Paulo: "Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que seja boa para a necessária edificação, a fim de que ministre graça aos que a ouvem" (Efésios 4:29). 

Salomão valoriza as palavras do sábio e reprova as do tolo, chamando-as de "loucura perversa" (v. 13). Conforme a experiência da vida nos ensina, geralmente o tolo "multiplica as palavras", ou seja, age como os gentios quando oravam, criticados por Jesus, que disse que eles pensavam que "pelo seu muito falar, serão ouvidos" (Mateus 6:7). 

Não só na oração, mas na vida, em geral, as pessoas tolas, que querem parecer sábias, se metem a falar de tudo freneticamente, na esperança de que suas bobagens não sejam percebidas no meio da sua verborragia, e possam passar uma imagem de sabedoria que não têm. 

Ao dizer que o tolo "nem sabe ir à cidade" (v. 15), além de mostrar o excesso de trabalho que a falta de sabedoria acarreta ao homem do campo, mostra que o tolo não procura se instruir. 

Naquela época, não havia escolas, e as cidades eram os locais onde se encontravam os sábios, geralmente discutindo em praça pública ou no templo. 

O tolo sequer se interessava em dirigir-se às cidades, pois a sabedoria estava longe dele em todos os sentidos da palavra "longe". 

O Pregador critica ainda a terra cujo rei é uma criança (v. 16) e cujos príncipes festejam já de manhã (ou ainda pela manhã), o que revelava a ociosidade do seu povo inconsequente. 

Já feliz era a terra em que seu rei era filho de nobres, ou seja, tinha tido boa educação, e os seus príncipes faziam tudo no seu devido tempo, sem se dedicar a bebedeiras (v. 17). 

A preguiça é criticada (v. 18), num contraste com o que o Pregador vinha dizendo até então, ou seja, que tudo era vaidade, e que de nada adiantava trabalhar. 

Obviamente, isto deve ser entendido dentro do equilíbrio que ele passa a propor, ou seja, o trabalho é bom, a preguiça deve ser evitada, mas tudo deve ser feito com equilíbrio e temperança, reservando tempo, inclusive, para não pensar em trabalho. 

O dinheiro pode atender a tudo na vida (v. 19), mas este versículo deve ser lido em conjunto com Eclesiastes 7:12, ou seja, "a sabedoria protege como protege o dinheiro; mas o proveito da sabedoria é que ela dá vida ao seu possuidor". 

Por fim, o Pregador pede cuidado com as palavras. Naquela época, as casas das cidades e das vilas eram pegadas umas às outras, e geralmente havia pátios internos ou praças externas interligando-as, então, tudo o que alguém falasse dentro do seu quarto podia muito bem ser ouvido pela vizinhança. 

Logo, era aconselhável que cada um guardasse os seus pensamentos para si, principalmente aqueles contrários aos ricos e poderosos (v. 20). 

A meu ver, a conclusão do capítulo 10, em relação ao sábio, pode muito bem ser relacionada a Filipenses 4:8 – "Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai".



Leitura seguinte: Eclesiastes - capítulo 11


segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Aquela misteriosa alegria...

Debaixo do sol escaldante, procurava algo que não sabemos...

- Onde está? - repetia mentalmente para si.
- Onde caiu?

Não tinha idéia de onde poderia ter caido tal preciosidade. Estivera procurando toda vida por aquilo. E agora que tinha a chance de encontrar, não estava conseguindo... Porém, seus companheiros já haviam encontrado... E já estavam desfrutando de seu achado... Contentes, rindo uns com os outros... Se pudessem, cantariam tão bem como o melhor coral dos melhores anjos. E não é por falta de tentar. Aliás, eles sempre tentaram fazer não só isto, mas muitas outras coisas...

E aquela alegria toda contribuía ainda mais para que ele não encontrasse o que procurava... Ele tinha que fazer alguma coisa... Por que só ele não o encontrava? O que há de errado com ele? Por quê?

A exclusão é dolorida, a solidão é uma tortura. Ele não queria ficar daquele jeito sempre... Ele tinha que encontrá-las. Deveria haver alguma forma... Se aqueles ali ao seu lado encontraram, por que ele não encontraria? Eles não eram diferentes dele. Talvez até fizesse de conta que tivesse encontrado, para se aproximar e descobrir como fizeram. Isto também o ajudaria a se concentrar mais em sua busca.

Então, com toda humildade do mundo, se aproximou daquela algazarra. Não se mostrou soberbo, não estava tentando ser melhor que ninguém. Foi educado, cordial, atencioso. E os que já riam, riram dele. Tentou rir juntamente com eles, como se aquilo tudo fosse uma brincadeira costumeira entre os ali presentes. Não conseguiu. Sua situação estava deveras séria, para que despertasse em si uma vontade, principalmente a vontade de rir. E aqueles ali perceberam que sua risada era falsa. Era uma risada sem vontade, forçada, aparente. Viram o riso, não viram a humildade. Não viram a educação, a cordialidade, a atenção. Viram sua imagem mas não o viram. E assim, riram. Então, mergulhado em mais profunda tristeza, começou a se afastar. Antes porém, direcionou sua atenção para o achado daqueles que estavam ali... Mas achou algo estranho...

- Mas, estavam felizes com isto? O que significa isto tudo?

Em sua mente, um turbilhão de idéias aflorou. Já tinha visto aquilo que eles tinham em mãos... Mas jamais pensaria que era aquilo que ele deveria procurar, pois aquilo sim lhe daria a alegria esperada. Uma alegria que ri não das imagens, mas uma alegria que convida todos a rirem unidos, sem tom de críticas.

E se aquilo não existir? Se aquilo for uma ilusão? Já bem sei que muitos dos que acharam aquilo, o deixaram de lado, se cansaram de rir um da cara do outro, e resolveram abandoná-lo. Pois eu achava um absurdo que fosse possível abandoná-lo, dado tamanha alegria que proporciona àqueles que o detém. Agora vendo o que acharam, fico na dúvida se tal coisa realmente existe.
E caminhou lentamente para um canto, onde pudesse efetivar sua solidão. Sentou-se ao chegar ali, e não muito depois, um pássaro azul, de beleza inigualável, sentou-se em uma árvore próxima. Não muito depois, iniciou um canto que ele jamais ouvira. Um canto tão belo, que tinha a impressão que aquele momento seria único. Um canto mais belo que aqueles ouvia tentarem. Isto o fez mergulhar novamente em seus pensamentos.

- É verdade que não se joga pérolas aos porcos. Por isto não as encontrei com eles. Antes, a lavagem que detinham é para eles suas pérolas. E quem que jogaria esta lavagem, senão o criador de porcos? Ele não está interessado na alegria deles, está interessado em sua própria alegria. E sua própria alegria custará a vida destes porcos que há pouco riram de mim. Tenho pena deles. Acharam que poderiam ver intenções ocultas, por que me viram sorrir falsamente. Mas eles não descobriram por que agi assim. E não vão descobrir nunca por que o seu criador age assim. Antes, estão satisfeitos com sua lavagem, que fez suas cabeças. Então, que continuem com sua alegria verdadeiramente falsa. Continuem com seus rituais, seus julgamentos, suas leis, suas vestimentas, suas condutas, seus instrumentos musicais, sua pompa, sua castidade e com toda sua exegese para defendê-los. Continue com sua lavagem.

E latindo agora de forma alegre, concluiu:

- Eu não voltarei a meu próprio vômito, não eu. Não vou mais deixar que a lama atrapalhe meu olfato. Nunca mais.

E partiu em sua busca, sabendo que certamente encontraria aquelas pérolas já há muito tempo prometidas. Mas o sorriso em sua face já denunciava que de alguma forma misteriosa, ele já havia encontrado...

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Viva o progresso!

Recentemente, lendo o jornal, me deparei na seção de cartas dos leitores, com o comentário de um leitor que comemorava a recente aprovação do estudo de células-tronco no Brasil. A comemoração de fato, foi apenas um pretexto para uma crítica à religião como um todo, já que a oposição à este estudo partiu de religiosos. Eu sinceramente desconheço toda a argumentação usada neste debate. Me parece que o que está envolvido é a decisão de se usar células que formariam um novo ser humano, para o tratamento de doenças em pessoas que já nasceram. Seria então um caso de se escolher qual vida sobreviveria. Minha intenção aqui não é discutir o tema e todos os argumentos envolvidos. O que me chamou a atenção em tudo isto foi a crítica deste leitor à religião, como algo que atrapalha o progresso. Isto me chamou a atenção, e pelo visto esta é uma opinião aceita por muitas pessoas hoje em dia.

Por isto, resolvi também comemorar o progresso, relembrando os grandes feitos em seu nome.


O progresso é sempre citado como um mantra, que encanta as multidões, e faz a cabeça de milhares. É tão eficaz neste papel que seria natural que entre as magias conjuradas pelo conhecido bruxo infantil Harry Potter haja uma magia chamada progressum mentalis para controle de mentes. Mas toda boa mágica, principalmente em livros infantis, precisa de um elemento extraordinário. Precisa fugir da realidade. O progresso já é muito bem usado pelos nossos magos da política. Os mais antigos destes magos já inseriram em 19 de novembro de 1889 o mantra em nossa bandeira, e desde aquele dia esperamos tanto a ordem como o progresso prometido. Alguns hoje acham que este progresso seria encher nossas estradas de pedágios ou vender tudo que o país conseguiu construir em toda sua história, e o governo é ruim justamente por que não promove este progresso.


Este poder de encantar se deve em parte por que o progresso é quase um padrão moral universal, e poderia muito bem ser adotado pelo sistema internacional de medidas. Quando uma coisa é ruim, ela atrasa o progresso, quando é boa ela faz o mundo progredir. E por isto religião é ruim, pois atrasa o progresso, pelo menos nossa noção atual de progresso, fique isto bem claro. Pois a religião na idade Média também supunha estar fazendo o mundo progredir, queimando seus hereges e fazendo um mundo espiritualmente mais uniforme (e mais obediente também). O tempo passa, o tempo voa, e o conceito de progresso não continua "numa boa". Esta indefinição sobre o que é o progresso, que ajuda os magos do progresso a progredirem a nível pessoal. Não é à toa que quem dita as regras dita também o conceito de progresso. O catolicismo da Inquisição ditava o que era o progresso, hoje governos ditam o que é o progresso. Progresso é a encarnação das vontades dos poderosos, independente de seu nível de poder. Veremos isto adiante.


O progresso que temos que comemorar hoje é o progresso tecnológico. A ciência impulsiona o progresso. Devemos agradecer à ciência por nos dar o computador, telefone, televisão, internet, por melhorar a nossa qualidade de vida no geral. Muitas doenças possuem hoje um tratamento eficaz graças a este progresso científico. Hoje eu sei que tudo que eu sinto, de amor a ódio, na verdade é simplesmente resultado de reações em meu organismo, mediadas por enzimas ou hormônios. Tenho que agradecer pelo fato de não sentir mais medo, agora o que tenho é muita adrenalina no sangue. Medo é uma ilusão. Com todo este progresso, até minha vontade está correndo risco de se tornar uma mera ilusão. Pobre Platão, que achava que a realidade era o mundo das idéias. A ciência, ou melhor, o positivismo lógico conseguiu inverter os papéis do mundo das idéias e o mundo dos sentidos de Platão. O mundo dos sentidos é a realidade que existe por trás do mundo das idéias, este sim o que vivemos. Claro, isto tudo se colocarmos a ciência como única capaz de explicar nosso mundo, como o positivismo lógico afirma e como parece ser o rumo que a coisidade está tomando.


E como estamos cada dia progredindo mais para que deixemos de ser humanos para ser alguma coisa, poderíamos até nos perguntar se nossa vida está realmente melhorando. Será que somos vivos mesmo, ou esta é apenas mais uma convenção de nosso ilusório mundo? É por isto que devemos sempre comemorar as novas conquistas da ciência, que nos dá a vida através das pesquisas com células tronco, enquanto a tira sorrateiramente de nós através dos conceitos que adotam. Atualmente vivemos uma total desconstrução do homem, comemoraremos muito quando conseguirem completar esta árdua tarefa. Será um grande progresso, e muitos leitores felizes irão mandar cartas para seus jornais prediletos, comemorando este novo progresso e criticando os tempos onde os sentimentos barravam o mesmo progresso. Provavelmente pessoas de alto gabarito como Josef Mengele serão reabilitados à ciência, quem sabe até "canonizados" por terem buscado empiricamente as respostas para suas dúvidas, e não se deixar levar apenas por seus "sentimentos". Finalmente todos seremos iguais, criminosos ou não. Vamos comemorar nossa igualdade, pois seremos igualmente nada.


Eu já sabia que eu não tinha vida nenhuma, o positivismo lógico só me confirmou isto. Pois quem chamaria de vida, o que eu levo? Eu não tenho a melhor televisão do mercado, não consigo comprar um notebook, tenho carro 1.0 parcelado em 60 vezes, meu celular tem tela monocromática e não tira foto, minha câmera digital tem apenas 3 Megapixels... Isto definitivamente não é vida. Pelo menos em nosso sistema capitalista. Pessoalmente não sou partidário do capitalismo, nem do socialismo. Porém, não posso deixar de observar o que foi deixado para nós através destes, o chamado progresso. O capitalismo em si é um grande progresso comparado com o feudalismo que o precedeu. Antigamente tínhamos os senhores feudais e os servos, agora aquele que explora se chama patrão e o que leva a pior é o empregado. As formas de exploração também ficaram bem mais sutis, uma grande revolução. Podemos perceber como as relações trabalhistas progrediram quando vemos o grau técnico dos trabalhadores. Antigamente, os servos já nasciam servos, e já começavam aquilo que consideravam ser sua vida trabalhando para seus senhores. Ninguém era obrigado a se especializar em nada, mesmo por quê não tinha como ser demitido por não saber o que fazia. Hoje não, somos bem mais modernos. Hoje além de sermos obrigados a ficar um terço de nossas vidas estudando para conseguir os menores salários oferecidos, muitos ainda fazem cursos para serem bons funcionários, fazem dinâmica de grupo, frequentam palestras sobre liderança, motivação... Tudo para que nos moldemos àquilo que definiram como o "empregado perfeito" (progresso como definido pelos que estão no comando). Curiosamente, nunca vi cursos para pessoas se tornarem "empregadores perfeitos". Aliás, o empregador nem precisa ser formado para ser empregador. Ele pode ser a pessoa mais arrogante que você conheceu, ou a pessoa mais dócil. Tanto faz. Ninguém vai condená-lo por ele ser o que é, e muitos dos grande empregados são aqueles que sabem ignorar a personalidade de seus superiores. Você nunca verá uma dinâmica de grupo com empregadores.


Um bom exemplo desta situação é o programa que tem passado todo ano chamado O Aprendiz, onde vários candidatos a "O usuário mais perfeito" se confrontam. Ali, são feitos vários testes para ver se todo mundo aprendeu tudo direitinho. Por exemplo, já vi alguns sendo demitidos, por que colocaram sua família em primeiro lugar. Os candidatos são isolados de todos os conhecidos enquanto estão participando do programa. Houve um caso onde um futuro pai estava dividido entre a vontade de acompanhar a esposa durante os últimos meses de gestação de seu filho, e a participação no programa. Em outro caso, a mãe queria voltar a ver seu filho pequeno. Mas eles tinham que colocar a empresa (no caso o programa) em primeiro lugar. A pessoa tem que viver para a empresa, e não para sua família. Geralmente, procuramos um emprego motivados por nossas famílias, para que possamos ajudá-las a se manter. Mas assim que entramos, deixamos a família de lado. A empresa deve vir em primeiro lugar. É o progresso definido pelos patrões, que se aproveita da desconstrução humana, para pregar que não devemos ter sentimentos, muito menos vida familiar. Por isto passamos quase um quarto de nossas vidas trabalhando, quando o funcionário não é obrigado a fazer horas extras ou trabalhar no fim de semana. O processo de desconstrução da sociedade é um passo inevitável, já que coisas não podem viver em sociedade. Voltarei a falar sobre isto adiante.


Outra pessoa foi demitida por que acreditava que estava aprendendo muito ali, e que ainda não sabia de tudo. Um bom funcionário então, deve saber de tudo. Ninguém deve aprender nada desempenhando suas funções. Imagino como seria uma reunião de funcionários que sabem tudo, e que porventura alguém entre em discordância com os demais. Imagino como seria muito complicado para estes funcionários que sabem tudo explicar como uma eventual falha possa acontecer. Pois as falhas acontecem, geralmente por que não sabemos de tudo. Não sabemos das n variáveis que podem influenciar nosso trabalho.


Tive que assistir com toda a revolta que pude reunir, como um grupo foi julgado por seu mau desempenho. Na verdade, não ficaram muito atrás de seus concorrentes. Mas isto não importava, tinha que se encontrar os culpados. Então o grupo foi obrigado a encontrar as falhas de cada um, coisa que ninguém conseguia fazer, pois ninguém conseguiu ver falha. Eles tinham feito tudo da melhor forma possível. Eles eram um grupo, eram uma equipe, e naquele momento, estavam sendo obrigados a ser "cada um por si". Eles não tiveram coragem de apontar tais erros, e foram repreendidos ainda. Mais uma vez, vemos a desconstrução da sociedade aqui também.


E o mundo de hoje incentiva este "cada um por si". Eu tenho que ser melhor que todo mundo. Você tem que ser melhor do que eu. Mesmo quando você está trabalhando em equipe, você tem que ser o melhor na equipe, mesmo que isto signifique às vezes prejudicar os outros. Em nome de ser o melhor possível, grandes empresas esmagam pequenas empresas que sustentam famílias honestas e trabalhadoras, apenas para conseguir menos do 1% atual a mais nos lucros. Em nome de ser o melhor possível, empregados que tem problemas de saúde e dependem de seu salário para pagar seus tratamentos são mandados embora por que sua produtividade está caindo. Em nome do melhor possível, pais de família com 5 filhos para criar devem aceitar míseros salários, pois senão serão substituídos por pessoas que não possuem nem um periquito para cuidar. Podemos dizer adeus ao trabalho ideal, aquele onde trabalhávamos não para sermos os melhores, mas para fazermos o melhor para todos, e não para alguns. Aquele que trabalhamos para o bem de todos, e não para o bem próprio, ou o bem dos patrões. Aquele que trabalhamos para mudar o mundo para melhor, o real progresso, e não para mudar o destino das próximas férias de nossos empregadores, ou as cifras de suas contas bancárias.


Isto não se limita infelizmente, ao mundo secular. Até as igrejas hoje parecem estar concorrendo para ser as melhores igrejas. A igreja melhor é a que possui grandes aparelhos de som, e que podem fazer um culto para todo o bairro escutar. Ou então a melhor igreja é aquela que resgata melhor as tradições de Israel, assim demonstrando que apesar de todo aquele show teatral, elas possuem alguma ligação com os judeus, talvez até com o cristianismo. A melhor igreja possui os melhores castiçais, a melhor iluminação, o melhor equipamento de som, os melhores músicos, o melhor logotipo...


Esta concorrência para ser o melhor nos faz cada vez mais consumistas. Deixamos de procurar aquilo que precisamos para precisar daquilo que outros definiram como necessário. E geralmente esta necessidade é alimentada por uma busca por status. Então, depois de algum tempo agindo assim, o consumismo se tornou normal. Hoje, pessoas desejam trocar de carro todos os anos só por trocar, só por que é bom ter carro novo. É certo que muitas vezes os carros mais velhos vão para a oficina mais vezes, porém nem sempre este é o caso, diria até que esta não chega a um quarto dos casos. Deixamos de ver o carro como um meio de transporte para encará-lo como um item de luxo necessário. Pagamos mais só por que ele corre mais, mesmo que não possamos correr tanto em nossas estradas, pagamos mais só por uma marca, pagamos para rebaixar o carro e deixá-lo muito diferente do que os projetistas o fizeram. Não critico as pessoas que modificam seus carros por hobby, uma vez que elas fazem isto por um prazer próprio, elas fazem isto por elas mesmas. Critico aqueles que o fazem para os outros. Critico isto naquelas pessoas que fazem isto para serem melhores que os outros.


Tudo isto de alguma forma contribui para nos afastarmos uns dos outros. Esta competição acaba com nossas relações sociais, na medida que transforma todos, mesmos inconscientemente, em concorrentes. É isto que chamo de desconstrução social, e ela prescede a desconstrução humana que já comentei. Pois precisaria primeiro deixarmos de ser uma sociedade humana, para depois deixarmos de ser humanos. Assim é mais fácil. Como consequência disto, agora temos até vergonha de pedir licença para uma pessoa nos deixar passar. Temos vergonha do diálogo. Evitamos todos, evitamos também as idéias dos outros. Hoje presencia-se o absurdo de se manter uma opinião por que simplesmente ela é sua opinião, deixando de lado os argumentos. Aliás, argumentos são fabricados, e por mais absurdos que eles sejam, são preferíveis do que a argumentação alheia. Nos isolamos dos outros, nos tornamos autônomos. E esta autonomia está agora se voltando contra nós mesmos. A solidão é a doença deste século, e não é à toa. Era até previsível isto. Nós estamos deixando de ser uma sociedade preocupada com seus membros. A preocupação com nossos membros só surge quando ela se torna um argumento para mantermos aquelas opiniões já ditas, ou quando ela se torna uma fonte de renda. Um bom exemplo disto é a carta do leitor que citei acima, onde ele comemora o progresso. Ele está tão preocupado com as pessoas doentes que esperam pelas pesquisas com células tronco, que deixou de comentar sobre elas em 95% de sua carta, para falar contra a religião.


Viva ao progresso, que desconstruiu o homem e sua sociedade. Viva ao progresso, que nos deu o poder de dizimar duas cidades com suas bombas atômicas, coisa que gastaríamos mais tempo para fazer, e atingiríamos somente os habitantes que viviam nas cidades durante os ataques. Viva o progresso que ajudou a acabar com a camada de ozônio. Viva o progresso que ajudou a construir Chernobyl. Viva o progresso que nos ajudou a construir armas mais violentas. Viva tudo isto. Não são coisas que costumamos nos lembrar quando comemoramos o progresso, por isto faço questão de lembrar a todos, que este progresso que muitas vezes comemoramos, teve um preço, e muitas vezes alto.


Espero que algum dia as pessoas ponham a mão na consciência, e reflitam sobre o que estão passando. Espero que algo possa ser feito para parar esta desconstrução pela qual passamos, e possamos mais uma vez ter a dignidade de nos considerarmos seres humanos, seres vivos. Espero que as pessoas voltem a se escutar, a se relacionar como pessoas, a se respeitar. Não será fácil isto. Um dos primeiros passos seria observar aquilo que já foi dito há muito tempo:

Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos. Pois, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? não fazem os gentios também o mesmo? (Mateus 5:44-47)

Infelizmente, como o texto é religioso, terá grandes chances de não ser valorizado. Afinal de contas, a religião atrasa o tal progresso. E não é verdade?

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Sobre a tolice

"A tolice é um inimigo mais perigoso do bem do que a maldade. Contra o mal se pode protestar, é possível desmascará-lo, pode-se, em caso de necessidade, impedi-lo com o uso da violência. O mal sempre já traz em si o germe da auto-desagregação, pelo fato de deixar ao menos um mal-estar na pessoa. Contra a tolice não temos defesa. Nada se consegue com protestos nem com violência; argumentos não adiantam; a fatos que contradizem o próprio preconceito não se precisa dar crédito – em tais casos o tolo até mesmo se torna crítico – e se esses fatos são incontornáveis, simplesmente se pode pô-los de lado como casos isolados sem significado. Diferentemente do malvado, o tolo está completamente satisfeito consigo mesmo; ele até mesmo se torna perigoso, pois facilmente se sente provocado e passa à agressão. Por isso, recomenda-se mais cautela em relação ao tolo do que ao mau. Nunca mais tentaremos persuadir o tolo com argumentos; é inútil e perigoso.

Para sabermos como podemos enfrentar a tolice, teremos de procurar entender sua natureza. Está provado que a tolice não é [essencialmente] um defeito intelectual, mas um defeito humano. Há pessoas intelectualmente muito ágeis que são tolas e outras intelectualmente muito lentas que são tudo, menos tolas. Para nossa surpresa fazemos essa descoberta por ocasião de determinadas situações. A impressão que se tem é de que a tolice não é tanto um defeito de nascença, mas que, sob certas circunstâncias, as pessoas são feitas tolas, isto é, deixam-se tornar tolas. Observamos ainda que pessoas retraídas e de vida solitária apresentam esse defeito com menos freqüência do que aquelas pessoas ou grupos de pessoas que se inclinam à convivência ou estão condenadas a ela. Assim sendo, a tolice talvez seja um problema mais sociológico do que psicológico. Ela é uma forma particular de influência das circunstâncias históricas sobre a pessoa, um sintoma psicológico de determinadas situações externas. Examinando melhor a questão, mostra-se que qualquer demonstração exterior mais forte de poder, seja ele político ou religioso, castiga boa parte das pessoas tornando-as tolas. E até se tem a impressão de que se trata aí de alguma espécie de lei sociológico-psicológica. O poder de uns precisa da tolice dos outros. No entanto, o que acontece não é que determinadas capacidades – como, por exemplo, as intelectuais – de repente se atrofiem ou desapareçam na pessoa, mas que, sob a impressão avassaladora causada pela demonstração de poder, a pessoa é privada de sua autonomia interior e então desiste – mais ou menos inconscientemente – de encontrar uma postura própria diante das condições de vida com que se depara. O fato de que o tolo muitas vezes se mostra obstinado não deve nos levar a concluir que seja independente. Na conversa com ele chega-se a sentir que não é com ele mesmo que se está tratando, mas com chavões e palavras de ordem que tomaram conta dele. Ele está fascinado, obcecado, foi maltratado e abusado em seu próprio ser. Tendo-se tornado, assim, um instrumento sem vontade própria, o tolo também é capaz de qualquer maldade e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecê-la como tal. Aqui reside o perigo de um abuso diabólico, por meio do qual pessoas poderão ser destruídas para sempre.

Mas é também neste ponto que se torna muito claro que não é um ato de instrução, mas somente um ato de libertação que poderia vencer a tolice. E aí teremos de conformar-nos com a constatação de que uma libertação interior autêntica, na maioria dos casos, somente será possível depois que tiver ocorrido a libertação exterior. Até que esta aconteça, temos de desistir de todas as tentativas de persuadir o tolo. Este estado de coisas também explica por que, nas referidas condições, nos esforçamos em vão para saber o que "o povo" realmente pensa, e por que, para a pessoa que pensa e age com responsabilidade, essa pergunta torna-se, ao mesmo tempo, dispensável – sempre apenas sob as circunstâncias dadas. A palavra da Bíblia de que o temor de Deus é o princípio da sabedoria afirma que a libertação interior da pessoa para uma vida responsável diante de Deus é a única verdadeira superação da tolice.

Aliás, estas reflexões sobre a tolice têm até um aspecto consolador, porque de maneira alguma permitem que consideremos a maioria das pessoas como tolas em qualquer circunstância. A questão decisiva é realmente se os detentores do poder esperam mais da tolice ou da autonomia interior e da inteligência das pessoas."

(BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão. Ed. Sinodal, 2003, pp. 33/34)





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Dietrich Bonhoeffer nasceu em 4 de fevereiro de 1906, em Breslau na Alemanha. Estudou Teologia em Tübingen e Berlim, onde se doutorou aos 21 anos. Trabalhou em várias igrejas européias de língua alemã (Barcelona, Londres) e concluiu seus estudos nos E.U.A. Em 1935 Bonhoeffer retornou para a Alemanha, aceitando o convite para ser reitor e professor do Seminário da Igreja Confessante, ala da igreja evangélica, que não aderiu à política nacional socialista. Após o seminário ser fechado pela polícia nazista, Bonhoeffer se engajou no movimento de resistência contra Hitler. Após muitas viagens pela Europa, ele foi preso em 5 abril de 1943 e executado em 9 de abril de 1945. Apesar do pouco tempo de vida, Dietrich Bonhoeffer deixou um legado teológico precioso e uma fé viva e coerente com seus ensinos.


E tudo se copia...

Longe de mim querer ser o único a ter reparado nisso, até porque fui procurar no Google e vi que o grande jornalista Flávio Gomes chamou a atenção para o fato na sua coluna no IG, mas parece mesmo que não é só o brasileiro que não tem memória; a arquitetura também. Guardadas as devidas proporções, o famoso Cubo D'água (1ª foto abaixo), onde estão sendo disputadas as provas de natação nas Olimpíadas de Pequim-2008, lembra muito a antiga rodoviária de São Paulo (2ª foto), desativada em 1982, depois transformada num centro de compras, o Shopping Fashion Luz, e que atualmente está sendo desapropriada para se integrar ao contíguo conjunto arquitetônico e cultural da Sala São Paulo (na antiga Estação Júlio Prestes, da Estrada de Ferro Sorocabana). Naquele tempo, a rodoviária era considerada um monumento kitsch ao mau gosto (com o perdão da redundância), com a sua fumaça concentrada, suas plantas de plástico, e aquela balbúrdia nas imediações, que só ajudou a deteriorar ainda mais o centro de São Paulo. Hoje, este tipo de arquitetura é considerado o supra-sumo da modernidade. Mudaram os tempos ou mudamos nós?




Beautiful songs - 3

BETCHA BY GOLLY WOW!

Composição: Linda Creed e Thom Bell (1970)
Primeira gravação: The Stylistics (1971)

There's a spark of magic in your eyes
Candyland appears each time you smile
Never thought that fairy tales came true
But they come true when I'm near you
You're a genie in disguise
Full of wonder and surprise

And betcha by golly, wow
You're the one that I've been waiting for forever
And ever will my love for you keep growin' strong
Keep growin' strong
If I could I'd catch a falling star
To shine on you so I'll know where you are
Order rainbows in your favorite shade
To show I love you, thinking of you

Write your name across the sky
Anything you ask I'll try
'Cause betcha by golly, wow
You're the one that I've been waiting for forever
And ever will my love for you keep growin' strong
Keep growin' strong
[break]

Betcha by golly, wow
You're the one that I've been waiting for forever
And ever will my love for you keep growin' strong
Keep growin' strong
Betcha by golly, wow
You're the one that I've been waiting for forever
And ever will my love for you keep growin' strong
Keep growin' strong

Betcha by golly, wow

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Diário de um lunático - 9


05/05/2007

Oi, gente!

Sou eu, o João de novo, invadindo a praia do meu irmão Pedro, que anda meio ocupado, e nem reparou que fui eu quem escreveu o último diário lunático dele. Com certeza, também não vai reparar que eu continuo escrevendo aqui. Enquanto isso, vocês vão ter que me engolir. É que eu queria contar o que aconteceu domingo passado, quando um amigo meu, o Juca, me convidou para ir à igreja que ele freqüenta, porque era uma ocasião especial, e eles iam receber uns profetas por lá, segundo as palavras que ele próprio disse. Já estranhei de início, porque uma igreja cristã deveria ter profetas sempre, de segunda a segunda, dentro e fora da igreja, e não só em ocasiões especiais. Mal sabia eu que o espanto continuaria quando chegasse lá.

Pra começo de conversa, eu já estranhei que tivesse uma bandeira de Israel por lá, e que uma moça dançasse sem parar com ela não só nos momentos de louvor, mas em qualquer hora que lhe desse na telha. Nada contra Israel, diga-se de passagem, mas acho que cada coisa deve ter seu lugar. Primeiro, estávamos numa igreja, não numa sinagoga. Aliás, nem sei se as sinagogas têm bandeiras de Israel em lugar de destaque nas suas reuniões públicas, ou se elas são usadas em algum ritual litúrgico. Independentemente disso, qualquer bandeira é um símbolo político, e como tal deve ser considerada. Pelo menos era o que eu imaginava, mas lá eu fiquei sabendo que, para ser cristão hoje em dia, é preciso ter um alinhamento automático com os objetivos políticos do Estado de Israel. Que as sinagogas tenham este alinhamento, é perfeitamente compreensível, mas uma igreja cristã deveria ser um lugar de acolhimento de todos, sem qualquer distinção de etnia, país, sexo, religião ou condição social. A coisa ficou ainda mais esquisita quando, assim, do nada, eu ouvi um som estranho, que, ainda meio atordoado, percebi que vinha de uns chifres do tipo de um berrante, daqueles que os vaqueiros usam para tocar a boiada, e meu amigo, diante da minha cara assustada, me explicou que aquele instrumento se chamava shofar, muito comum entre os profetas do Velho Testamento, e que aquilo significava que a aliança de Deus com o povo havia sido quebrada e era necessário restaurá-la mediante o que ele chamou de "atos (e sons) proféticos" como aquele. Só então meu amigo disse que ele "achava" que tinha antepassados judeus, e era importante resgatar a história da família. Achei interessante isso, porque o Brasil é um país onde houve uma miscigenação tão grande que é difícil alguém não ter um antepassado judeu (ou muçulmano), principalmente aqueles que ficaram na Península Ibérica como cristãos-novos (os sobrenomes Figueira, Oliveira, Parreira, etc., estão aí para que não me desmintam). Se bem que eu acho que o que o povo da igreja dele não gosta mesmo é de cristãos velhos... Ainda bem que este meu amigo (até onde sei) não crê em terapia de vidas passadas, senão teríamos mais uma reencarnação de algum faraó na praça.

Aí eu entrei em parafuso, né.... uai, por que é que Jesus veio, então, se bastava tocar um shofar pra chamar o povo ao arrependimento? Por que é que a Bíblia diz que Jesus é o mediador de uma nova aliança, então? "Não" - disse meu amigo -, "precisamos de profetas". Parece que a crucificação dele já não é mais suficiente para os cristãos atuais. É preciso voltar mais atrás, resgatar antigas práticas judaicas para agradar a Deus. E tudo se resume numa palavra que eu ouvi umas mil vezes naquela noite, "unção". Ora, eu achava que a unção de Deus já havia sido dada a todos os cristãos, através de Jesus. Pelo menos, é o que João diz em sua primeira carta (2:20,27 – não agüentei, cheguei em casa e fui conferir). Aparentemente, não era isso o que eles pensavam, pois havia unção para tudo, e de tudo quanto é nome. Teve até um que disse que havia uma "unção diferente" para aquele culto. Será que ele não queria uma unção igual a que Jesus deu aos primeiros cristãos? Outro insistia em dizer que éramos produtos dos sonhos de Deus, como se o Todo-Poderoso tirasse um cochilo depois do almoço todo santo dia. Na hora dos dízimos e das ofertas, disseram que tínhamos que sacrificar alguma coisa, senão Deus não nos ouviria. Será que eles queriam crucificar Jesus de novo? Fiquei na dúvida... Outra coisa que eles atacavam muito era a religiosidade (dos outros). Ora, eu nunca vi tanta religiosidade na minha vida como naquela noite, só que com outros nomes. Pelo menos, eles inauguraram a hiper-religiosidade anti-religiosidade. Novidade pra mim.

Confesso que não gostei do que vi e ouvi. No final, ficou uma sensação de que esses crentes de hoje são uns eternos insatisfeitos. A graça de Deus não satisfaz mais, nem Deus fez uma nova aliança com a humanidade. Viver uma vida cristã simples, tranqüila e piedosa, ninguém mais quer; é preciso novidades em profusão (senão eles "abandonam" a igreja e a fé). No meu tempo, a graça de Deus bastava; agora, parece que não basta mais. Não satisfaz. Isto me fez lembrar daquela musiquinha que a gente cantava na Escola Dominical de uma igreja lá perto de casa, quando eu era criança: "Satisfação sem fim". Como é que era mesmo? Lembrei! "Satisfação é ter a Cristo, não há melhor prazer já visto"... "Sou de Jesus e agora sinto satisfação sem fim".... acho que era assim. Só muito tempo depois eu percebi que aquele corinho era uma resposta ao "I can get no satisfaction" ("Eu não consigo ter satisfação"), do Rolling Stones. Talvez, se Mick Jagger cantasse hoje na igreja do meu amigo, o povão ia se identificar. E iam dançar com a bandeira da Inglaterra... que pelo menos tem uma cruz, só pra contextualizar...

Já me decidi, não volto mais lá.

sábado, 9 de agosto de 2008

O que são dez anos?

"Dez anos são, na vida de qualquer pessoa, um longo tempo. Por ser o tempo o bem mais precioso, porque o mais irrecuperável entre todos os bens dos quais dispomos, inquieta-nos, ao olharmos para trás, a idéia de eventualmente termos perdido tempo. Tempo perdido seria o tempo em que não vivemos como pessoas, em que não fizemos experiências, não aprendemos, não realizamos, não desfrutamos nem sofremos. Tempo perdido é tempo não preenchido, vazio. Certamente não se pode dizer isso dos anos passados. Perdemos muito, tanto que nem mesmo pode ser medido, mas o tempo não foi perdido. É verdade que conhecimentos e experiências adquiridos, dos quais se toma consciência posteriormente, são abstrações do genuíno, da existência vivida mesmo. Mas assim como poder esquecer decerto é graça, também a memória, a repetição de ensinamentos recebidos faz parte de uma vida responsável."

(Dietrich Bonhoeffer, em "Resistência e Submissão", Ed. Sinodal, 2003, p. 27)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

O evangelho de Lucas - parte 37

Lucas começa o capítulo 22 situando no tempo os momentos finais da missão de Jesus neste mundo. Era a festa da Páscoa (v. 1), e os principais sacerdotes e os escribas conspiravam para matar Jesus (v. 2). Aqui Lucas propõe um contraste imediato e marcante entre a Páscoa judaica, tal como recebida da tradição veterotestamentária (Êxodo 12), em que a primeira Páscoa havia acontecido na noite da morte dos primogênitos do Egito, a décima e última praga do Senhor sobre os opressores de Israel, em que um cordeiro puro era sacrificado para proteger os judeus. Agora, eram os seus principais sacerdotes que preparariam outro cordeiro, o Cordeiro de Deus, para o sacrifício, como bem lembra Paulo em 1ª Coríntios 5:7 ("Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós"). Para tanto, contam com a influência de Satanás em um dos discípulos mais próximos de Jesus, Judas (v. 3), que foi em busca dos conspiradores (v. 4), vender a sua lealdade a Cristo (v. 5). É certo que Judas tinha entendido mal as palavras de Jesus. Talvez realmente visse nEle alguém enviado da parte de Deus, afinal havia sido testemunha de muitos de seus sinais e prodígios. Talvez, imbuído de alguma espécie de messianismo político, quisesse apressar uma revolução libertadora do jugo romano mediante a entrega de Jesus aos religiosos (v. 6). Imaginava, muito provavelmente, que Jesus usaria todo aquele seu poder magnífico para vencer os opressores tanto romanos como judeus. Entretanto, destoa o fato de ter aceito dinheiro para "vender" o Mestre. Que isto cumpre a profecia de Zacarias 11:12, não há dúvida, e reforça também o que diz Jesus em João 17:12, "Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse". É triste o destino de Judas, portanto. Ele se enganou sobre o tipo de liberdade que Jesus pregava e representava.

Chega, então, o dia da Festa dos Pães Asmos, a Páscoa (v. 7). Jesus incumbe João e Pedro de prepará-la para o seu grupo de discípulos (v. 8). Eles lhe perguntam onde se reuniriam (v. 9), ao que Jesus responde que encontrariam um homem com um cântaro de água na entrada da cidade, e deviam segui-lo até a casa onde ele entrasse (v. 10), e então diriam ao dono da casa uma espécie de senha (v. 11), e ele lhes mostraria um cenáculo espaçoso e mobiliado, onde deviam fazer os preparativos (v. 12). Os dois discípulos se puseram a caminho, e tudo aconteceu conforme o Mestre lhes havia predito (v. 13). Aqui percebemos que, a exemplo do que ocorreu na entrada triunfal em Jerusalém (Lucas 19:28-34), Jesus se precavera com uma rede de discípulos que utilizava sinais e códigos secretos naqueles momentos difíceis de perseguição. A igreja nascente voltaria a usar esses códigos secretos pouco tempo depois, como o símbolo do peixe para identificar os cristãos, mas é interessante ter uma idéia de como a situação de Jesus e seus discípulos se complicava à medida em que os eventos finais se aproximavam. Eles se reúnem, então, para festejar a Páscoa (v. 14), e Jesus se diz ansioso por compartilhar aquele momento e lhes prediz, de novo, o seu sofrimento (v. 15). É surpreendente que o próprio Deus-Homem reconheça a sua ansiedade para que aquele dia chegasse, mas isto também nos revela a sua plena humanidade. Era a última vez que dividiria uma refeição com seus amigos neste mundo (v. 16), e tomou um cálice, repartiu o vinho entre seus discípulos (v. 17), pois só beberia vinho novamente na sua segunda vinda (v. 18). Em seguida, parte e reparte o pão, simbolizando o seu corpo que seria oferecido por nós, e pede que eles repetissem isto posteriormente, em memória dEle (v. 19). Da mesma maneira, relaciona o vinho ao sangue que derramaria em favor de nós (v. 20), mas ainda diz que o traidor estava à mesa com Ele (v. 21), alertando sobre o seu triste destino (v. 22), o que provoca uma dúvida cruel nos seus discípulos, que se indagavam a qual deles o Mestre se referia (v. 23).

Parece totalmente fora de propósito o que vem a seguir, mas da afirmação feita pelo próprio Jesus, de que havia um traidor naquele recinto, isto numa época de enorme perigo, eles passam a discutir qual deles parecia ser o maior (v. 24). Jesus chama a atenção deles para a futilidade do debate (v. 25), dizendo-lhes que agora a lógica era outra: o maior devia ser como o menor, e aquele que dirige como o que serve (v. 26). Mostra-lhes, ainda, que Ele próprio estava servindo-lhes (v. 27) e reconhece que eles tinham permanecido com Ele durante suas tentações (v. 28). Por isso, o Reino que o Pai lhe confiara Ele agora confia aos discípulos (v. 29), que, juntamente com Jesus, julgarão as dozes tribos de Israel no dia final (v. 30). A conversa toma outro rumo, ainda, quando Jesus adverte Pedro de que Satanás havia pedido para cirandá-lo como trigo, ou seja, peneirá-lo (v. 32), mas o Mestre havia rogado por ele para que a sua fé não desfalecesse (v. 33). Esta situação lembra a do primeiro capítulo de Jó, em que Satanás requer a Deus que possa afligir a seu servo, tirando-lhe absolutamente tudo o que tinha, inclusive os filhos, mas com exceção da vida, para ver se sua fé era preservada. Pedro estava diante daquele que era o Todo, o Deus absoluto, cuja presença física lhe seria tirada dentro em breve. Mesmo assim, Pedro se arvora com condições de enfrentar o desafio (v. 33), no que é advertido mais uma vez por Jesus, de que 3 vezes o negaria antes que o galo cantasse na manhã seguinte (v. 34). Em, seguida, Jesus lhes diz que o tempo em que saíam pelos campos, totalmente desprovidos de qualquer conforto ou segurança, haviam terminado (v. 35). Agora, precisavam de alforjes, sandálias e espadas (v. 36), já que a profecia de que seria contado entre os malfeitores (Isaías 53:12) também seria cumprida (v. 37). Os discípulos arranjaram rapidamente duas espadas (v. 38).

Vem, então, o momento da prisão de Jesus. Diz Lucas que, "como de costume", ele foi para o Monte das Oliveiras (v. 39). Chegando lá, pediu aos seus discípulos que orassem para evitar entrar em tentação (v. 40). Recolheu-se um pouco mais adiante para ajoelhar-se e orar (v. 41), dizendo a frase que ficou célebre: "Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua" (v. 42). O cálice lembra o sofrimento, a desolação, a ira de Deus contra o pecado do homem (Isaías 51:17, Ezequiel 23:33). Jesus o conhece, e sabe o que lhe está reservado, mas se submete à vontade de Deus Pai. Aqui a natureza humana de Jesus se revela. Como homem, sem pecado, sentiria na própria carne, a ira de Deus contra o pecador. Alguns dizem que os vv. 43 e 44 não constavam do texto original e foram interpolados posteriormente. Neles, um anjo aparece para confortar Jesus, e este entra numa agonia tão profunda que chega a suar sangue. Este fenômeno raríssimo, chamado tecnicamente de hematidrose, pode acontecer em situações de extremo stress. A literatura médica registra muito poucos casos, geralmente associados aos estigmas, que sempre têm um fundo religioso. Há um artigo recente no The American Journal of Dermatopathology, cujo abstrato pode ser acessado aqui.

O fato de Lucas tê-lo registrado advoga em favor da canonicidade desses dois versículos. Afinal, ele era médico e sempre teve um, digamos, olho clínico para situações como essa. O abatimento era geral, tanto de Jesus como de seus discípulos, que provavelmente estavam muito assustados. Ao retornar da oração, o Mestre achou-os "dormindo de tristeza" (v. 45), e chamou-lhes a atenção, dizendo que não era hora de dormir, mas de levantar e orar para não cair em tentação (v. 46). Mal acabou de falar, uma multidão (composta de sacerdotes, capitães do templo e anciãos, cfe. v. 52) se aproximou com Judas à frente, que o beijou (v. 47). Jesus ainda acentua a traição com um beijo (v. 48), enquanto os discípulos se preocupam com a espada (v. 49), tendo um deles (Pedro, segundo João 18:10) cortado a orelha do servo do sumo sacerdote (v. 50). Jesus intervém, acalmando os ânimos e curando a orelha do ferido (v. 51), mas aproveita para censurar seus perseguidores, por trazerem um aparato daqueles para prendê-lo (v. 52), quando poderiam tê-lo feito no templo. Prender alguém de noite, culturalmente falando, revela covardia, tocaia, alguém que age na base da traição. Os artigos 245 e 293 do Código de Processo Penal brasileiro, por exemplo, limitam as prisões noturnas. A noite é o domínio das trevas, "a vossa hora", como Jesus disse aos seus acusadores (v. 53).

Jesus é levado, então, para a casa do sumo sacerdote, com Pedro seguindo-o de longe (v. 54). Começa, então, a sucessão de negações que este vai enfrentar. Primeiro, uma criada o reconhece (v. 56), depois outro (v. 58) e mais outro (v. 60). Não só as feições, mas o sotaque carregado de "caipira" galileu o denunciava (v. 59). Três vezes Pedro nega a Jesus, e finalmente o galo canta (v. 60). Foi nesta hora que Jesus, o Senhor (como Lucas faz questão de afirmar, usando a palavra grega κύριος - kurios ) se vira para mirar nos olhos de Pedro. Até então, Lucas fizera um uso cuidadoso desta palavra, κύριος - kurios , mas desde o capítulo 20, verso 42, quando Jesus cita o Salmo 110:1 ("Disse o Senhor ao meu Senhor"), ele faz questão de associar este termo Senhor, divinamente revelado e confirmado, ao próprio Jesus. Dentro de todo o contexto do capítulo 22, onde as naturezas humana e divina de Cristo aparentam estar em conflito, o evangelista vai pouco a pouco realçando uma e outra, para mostrar tanto a complexidade como a maravilha da Trindade e da Encarnação. Pedro se lembra, então, do aviso que recebera do próprio Mestre no cenáculo, e se retira chorando amargamente (v. 62).

Os guardas passam a zombar de Jesus, espancando-o (v. 63), e escarnecendo dos seus poderes divinos (v. 64), blasfemando (v. 65). Como Isaías profetizara 700 anos antes (53:7), "ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca". Só de manhã bem cedo é que Jesus é levado ao Sinédrio (v. 66), onde procuram fazê-lo dizer que era o Cristo (v. 67), mas Jesus se esquiva (v. 68), mas, reforçando esta idéia que Lucas vem dando no contexto, sobre a profundidade da Trindade e da Encarnação, diz em seguida que a partir daquele momento o Filho do Homem estaria sentado à direito de Deus Todo-Poderoso (v. 69). Todos os sacerdotes, que obviamente já haviam ouvido a sua pregação antes, perguntam se Jesus era o Filho de Deus, ao que ele responde: "Vós dizeis que eu sou" (v. 70). Eles não perceberam isso na hora, mas não estavam dizendo apenas com a boca, mas com o triste papel que desempenhavam no martírio e no sacrifício de Cristo. Entendem que esta declaração é suficiente para incriminá-lo, eles preparam a entrega do Mestre a Pilatos, o que se dá no início do capítulo 23.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Leituras cristãs - 3

Philip Yancey é um autor consagrado no meio cristão, embora tenha uma maneira um tanto quanto diferente de escrever. A literatura cristã é dividida, basicamente, em quatro grandes estilos. O primeiro é o dos clássicos, aqueles livros que conseguem tal repercussão, que entram para uma categoria especial que influencia gerações de cristãos. Entre os principais autores, além dos Pais da Igreja (Agostinho, Irineu, Atanásio, etc.), para citar alguns mais próximos da nossa era, estão G. K. Chesterton ("Ortodoxia") e C. S. Lewis ("Mero Cristianismo"). O segundo é composto pelos livros de teologia propriamente ditos, em que são discutidos e sistematizados os grandes dogmas do cristianismo, com algumas adaptações conforme o grupo ao qual o autor se filia. O terceiro é o que eu chamaria de denominacional, em que alguns aspectos muito particulares de determinadas igrejas têm uma importância tão decisiva na sua pregação, que toda uma literatura muito específica é construída para justificá-los. O quarto é uma versão supostamente cristã do estilo de auto-ajuda que vende feito água nas livrarias. São os tais "Doze Passos para...", "Sete Maneiras de...", enfim, um monte de títulos cabalísticos para, em tese, ajudar os cristãos a entender ou superar determinados problemas que estão na moda entre os evangélicos, ou que são realmente um entrave para o seu crescimento emocional. Felizmente, existem livros sérios (e bons) nesta área, entre os quais destaco dois livros de David A. Seamands, "Cura para os Traumas Emocionais" e "O Poder Curador da Graça".


Yancey flerta com este quarto estilo, embora não proponha nenhuma espécie de "tratamento" para neuroses evangélicas ou x meios para alcançar a prosperidade financeira. Os seus livros estão muito próximos de se tornarem clássicos também, embora ele não defenda nenhuma tese ou dogma em especial. A característica marcante dos seus livros é a sinceridade (e a honestidade) com que ele se expõe, revelando os seus dilemas mais íntimos e debatendo alguns problemas comuns a todos os cristãos. Apresenta, ainda, as visões de vários outros autores cristãos de todas as vertentes, cruzando-as com as opiniões de outros pensadores, inclusive ateus, para tentar formar um quadro do que realmente significa ser cristão no mundo de hoje. Neste aspecto, "O Deus (In)visível" (publicado no Brasil pela Ed. Vida) é, a meu ver, o melhor dos seus livros, em que ele sintetiza, dentro do possível, o que lhe passa pela cabeça quando o tema é o relacionamento humano com um Deus, que, muitas vezes, parece estar ausente ou alheio ao que acontece a nós e a este mundo. É uma leitura que eu recomendo mesmo para quem é ateu ou não é cristão. Ajuda a entender quem nós somos, com o que e com quem nos identificamos como cristãos e como seres humanos, e o que buscamos para nossas vidas e para nossas comunidades. Alguns trechos do livro merecem ser destacados, e passo a transcrevê-los a seguir:

“Leve-me a sério!” Trate-me como adulto, e não como criança!”, é a reclamação de todo adolescente. Deus respeita esse pedido. Torna-me um parceiro da obra que realiza em mim e por meio de mim. Dá-me liberdade com total conhecimento de que abusarei dela. Abdica do poder até me pedir que não “entristeça” nem “apague” seu Espírito. Deus faz tudo isso porque quer como parceiro uma pessoa madura, e não um adolescente apaixonado. (p. 174)

Quem diz que crê em Deus e, no entanto, não o ama nem o teme na verdade não crê nele, mas naqueles que ensinaram que Deus existe. Quem acredita que crê em Deus, mas não tem nenhuma ira no coração, nenhuma angústia no espírito, nenhuma incerteza, nenhuma dúvida, nenhum indício de desespero, mesmo quando consolado, crê apenas na idéia de Deus e não em Deus.” (citando Miguel de Unamuno) (p. 175)

Quando recebemos a graça de Deus e a vida espiritual se inicia, a tensão também aumenta. Um santo perfeito não experimentaria nenhuma tensão, e um pecador que não fosse perturbado pela culpa também não a experimentaria. O restante de nós deve viver em algum ponto entre os dois extremos, o que complica a vida mais que simplifica. (p. 179)

Quando perguntaram a Dwight L. Moody se era cheio do Espírito, ele respondeu: “Sim. Mas tenho um vazamento”.
[...]
Os escolhidos de Deus reagiam com a mesma paixão. Moisés discutiu com Deus tão calorosamente que diversas vezes persuadiu Deus a mudar de idéia. Jacó lutou a noite inteira e usou de subterfúgios para conseguir a bênção de Deus. Jó atacou a Deus com uma fúria sarcástica. Davi infringiu pelo menos metade dos Dez Mandamentos. Mas eles nunca desistiram totalmente de Deus, e Deus nunca desistiu deles. Deus pode aplacar a ira, a culpa e até mesmo a desobediência obstinada. Contudo, existe algo que impede o relacionamento: a indiferença. “Voltaram as costas para mim e não o rosto”, disse Deus a Jeremias (32:33), em uma acusação condenatória de Israel.

Com os gigantes espirituais da Bíblia, aprendi uma importante lição sobre o relacionamento com um Deus invisível: faça o que fizer, não ignore a Deus. Convide-o a participar de cada aspecto da vida. Para alguns cristãos, períodos de crise como o de Jó são o grande perigo. Como ter fé em um Deus que parece insensível e até mesmo hostil? Outros, e eu me coloco entre eles, enfrentam um perigo mais sutil. Um acúmulo de distrações, um computador que funciona mal, contas a pagar, uma viagem que tenho de fazer, o casamento de um amigo, a correria normal da vida gradualmente tiram Deus do centro de minha existência. Às vezes, conheço pessoas, alimento-me, trabalho, tomo decisões, faço tudo sem dedicar a Deus um simples pensamento. E esse vazio é muito mais sério do que aquele que foi experimentado por Jó, pois em nenhum momento Jó parou de pensar em Deus.

Em um estudo bíblico do qual participei, um amigo fez o seguinte comentário sobre a vida do rei Davi: “Se Saul prova que “a obediência é melhor do que o sacrifício”, então Davi convence que o relacionamento é ainda melhor que a obediência”. Embora alguém possa achar essa declaração discutível, a história de Davi, no mínimo, demonstra que um relacionamento com Deus pode sobreviver aos mais estarrecedores atos de desobediência. Volto às páginas da história de Davi porque não encontro um exemplo melhor de um relacionamento apaixonado com Deus do que aquele que tinha o rei chamado Davi. Até mesmo seu nome significava, o que vem a propósito, “bem-amado”
(p. 181).

Uma vez, ouvi um sermão memorável sobre Ananias e Safira, história assustadora de Atos 5 que muitos pregadores cautelosamente evitam. Trata-se de um casal que, depois de mentir sobre sua oferta à igreja, cai morto. A passagem, segundo John Claypool, deixa claro que bastou ao casal fazer uma coisa errada para atrair o castigo fatal. Ter guardado o dinheiro não foi o problema: Pedro assegurou-lhes que tinham esse direito. O casal errou porque fingiu ser piedoso. Deus pode perdoar qualquer pecado e pode lidar com qualquer condição espiritual. Nós caímos e levantamos, padrão que a Bíblia exemplificou amplamente, tanto em Davi como em Pedro. Deus exige sinceridade. Não nos atrevamos a fingir diante de Deus, pois assim fechamos as mãos para a graça. (p. 186)


Cada pessoa na Terra vive um roteiro único de dificuldades: solidão quando o casamento sempre foi o alvo, incapacidade física, pobreza, maus-tratos na infância, preconceito racial, enfermidade crônica, família desfeita, vício, divórcio. Se enxergar Deus como Zeus, atirando raios sobre os desventurados seres humanos aqui embaixo, então naturalmente dirigirei minha ira e frustração contra ele, a causa imediata de minhas dificuldades. Se, no entanto, entender que Deus trabalha por trás, sob a superfície, chamando-nos em cada fraqueza e limitação, abro a possibilidade da redenção exatamente para as coisas das quais mais me ressinto na vida.
“O bem e o mal, no sentido moral, não residem nas coisas, mas sempre nas pessoas”, escreveu Paul Tournier. “As coisas e os acontecimentos, felizes ou infelizes, são simplesmente o que são, moralmente neutros. O que importa é a maneira com que reagimos a eles. Raramente somos senhores dos fatos, mas (junto com os que nos ajudam) somos responsáveis por nossas reações. [...] Os acontecimentos nos causam sofrimento ou alegria, mas o crescimento é determinado pela reação de cada pessoa a ambos, por sua atitude interior”. Sendo médico, o dr. Tournier combate o sofrimento e se esforça por aliviar a dor de seus pacientes. Contudo, como conselheiro, faz uso dele de modo sábio, conduzindo seus pacientes a uma reação que lhes permita crescer com a aflição.
Tournier, diga-se de passagem, escreveu o livro “Creative suffering” (Sofrimento criativo) para explorar um fenômeno que sempre o perturbou: as pessoas de maior sucesso geralmente vêm de famílias complicadas ou infelizes. Um colega, ao pesquisar os líderes de maior influência na história do mundo, descobriu que quase todos – a lista de trezentos incluía Alexandre, o Grande, Júlio César, Luís XIV, George Washington, Napoleão a rainha Vitória – tinham algo em comum: eram órfãos. Tournier ficou desconcertado porque, embora vivesse dando conferências sobre a importância de os pais cooperarem para produzir um ambiente familiar criativo, todos esses líderes emergiram de um estado de privação emocional. Tournier, que era órfão, começou a olhar para as dificuldades como algo que não devia ser simplesmente eliminado, mas aproveitado para o bem redentor.
(pp. 272/273)

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Justiça no pensamento aristotélico - 7


6) AMIZADE E JUSTIÇA, A TÍTULO DE CONCLUSÃO

É interessante verificar, também, como Aristóteles desenvolve a sua idéia de amizade como expressão de justiça. Como bem reparou Bittar:
“Para Aristóteles, amizade (philía) e justiça (dikaiosýne) estão estreitamente ligadas, podendo-se mesmo dizer que a primeira é que se mostra como sendo o verdadeiro liame que mantém a coesão de todas as cidades-estado. Se comparadas, uma e outra, aquela há de ser colocada como o verdadeiro assento da paz nas relações entre as diversas cidades-estado, motivo pelo qual se deve dizer que a amizade concorre preventivamente para o bem do convívio social. A amizade é louvada pelos legisladores, e sua semântica assemelha-se àquela da concórdia entre as cidades. De fato, é a amizade (philía) elemento de importância para a reciprocidade inerente ao convívio social, ao qual o homem está predisposto por natureza, motivo pelo qual recebe amplo tratamento no contexto da Ethica Nicomachea.” [1]

Já no Livro IV da Ética a Nicômaco, Aristóteles recorre a uma categoria introdutória, para posteriormente desenvolver o tema da amizade. Diz o estagirita que, na sociedade, mais especificamente nas reuniões e nos encontros que propiciam o convívio, existiriam algumas pessoas a quem se poderia considerar amáveis. Esta acepção de amabilidade – originada, talvez, da intenção afável - corresponderia a um determinado comportamento padrão que revela, por assim dizer, uma predisposição em relação ao outro, para aceitá-lo, conhecê-lo, agradá-lo, de maneira também a, reciprocamente, ser bem-vindo e bem aceito. Essa disposição, nas palavras de Aristóteles, “ainda não recebeu um nome, embora ela se assemelhe muito à amizade[2]

O filósofo prossegue dizendo que, “as pessoas amáveis convivem com as demais da maneira certa, mas é com vistas ao que é honroso e conveniente que elas visam a não causar desgostos ou a contribuir para o prazer. Elas parecem efetivamente preocupadas com os prazeres e desgostos no convívio social, e sempre que não lhes for honroso ou for prejudicial contribuir para o prazer, elas se recusarão a fazê-lo”[3] .

É no Livro VIII da Ética a Nicômaco, entretanto, que Aristóteles se aprofunda no mister de examinar a natureza da amizade. De imediato, esclarece que amizade supõe convívio, semelhança, tempo e intimidade. Se consideramos o amor como emoção, a amizade seria disposição de caráter, o que justificaria a racionalidade com que escolhemos o elenco dos nossos amigos. Amizade pressupõe, pois, uma espécie de pacto de reciprocidade, afeição e generosidade no sentimento, como se, uma vez rodeados de amigos, fôssemos mais capazes para melhor agir. Como diz Aristóteles (grifo nosso):
“Mesmo quando viajamos para outras terras podemos observar a existência generalizada de uma afinidade e afeição natural entre as pessoas. A amizade parece também manter as cidades unidas, e parece que os legisladores se preocupam mais com ela do que com a justiça; efetivamente, a concórdia parece assemelhar-se à amizade, e eles procuram assegurá-la mais que tudo, ao mesmo tempo em que repelem tanto quanto possível o facciosismo, que é a inimizade nas cidades. Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam da amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa.” [4]

Ainda que se considere que o conceito aristotélico de amizade é nitidamente aristocrático, dada a sua condição, a perfeita amizade não seria exatamente aquela em que se procura o auxílio ou a assistência do amigo. A amizade perfeita seria aquela que ocorre, necessariamente, entre iguais, envolvendo o reconhecimento dos atributos de um amigo no outro. É, por assim dizer, um terreno em que a justiça como conceito não pode satisfazer. Como diz Victoria Camps, “essa amizade grega vem para cobrir uma necessidade que a justiça não chega a satisfazer por não poder fazê-lo[5] .

A relação entre amigos não pressupõe nem a necessidade de defesa de um contra o outro, tampouco a necessidade de algum tipo de regulação externa. Existe na amizade, pois, uma espécie de predisposição solidária. Nos termos de Victoria Camps, “a solidariedade é uma prática que está ao mesmo tempo aquém e além da justiça: a fidelidade ao amigo, a compreensão ao maltratado, o apoio ao perseguido, a aposta em causas impopulares ou perdidas, tudo isso não se pode constituir propriamente como dever de justiça, mas sim como dever de solidariedade[6] .

Como depreendemos pelo texto de Aristóteles:
“Como dissemos no início, a amizade e a justiça parecem relacionar-se com os mesmos objetos e manifestar-se entre as mesmas pessoas. Realmente, parece que em todas as formas de associação encontramos alguma forma peculiar de justiça e também de amizade; nota-se pelo menos que as pessoas se dirigem como amigas aos seus companheiros de viagem e aos seus camaradas de serviço militar, tanto quanto aos seus parceiros em qualquer espécie de associação. Mas a extensão de sua amizade é limitada ao âmbito de sua associação, da mesma forma que a extensão da existência da justiça entre tais pessoas. O provérbio ‘os bens dos amigos são comuns’ é a expressão da verdade, pois a amizade depende da participação. Os irmãos e os membros de uma confraria têm tudo em comum, mas as outras pessoas às quais nos referimos têm somente certas coisas em comum – algumas mais, outras menos – pois nas amizades também há maior ou menor intensidade.
...
As reivindicações de justiça também parecem aumentar com a intensidade da amizade, e isto significa que a amizade e a justiça existem entre as mesmas pessoas e têm uma extensão igual.” [7]

Vemos, pois, que Aristóteles destaca diversos elementos que configurariam a justiça, mas é interessante que ele termine sua obra Ética a Nicômaco com essa comparação entre justiça e amizade. Parece que, para o filósofo, a amizade sintetiza a sua visão de eqüidade e igualdade como intrínsecas a justiça, como ideais a serem perseguidos para a consecução de uma sociedade justa.

Neste particular, para finalizar o presente trabalho, permitimo-nos juntar ao presente trabalho uma sentença da lavra do então Juiz Antonio Vilenilson Vilar Feitosa, hoje Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Se o tema é amizade, e se se diz correntemente que o melhor amigo do homem é o cão, Aristóteles por certo se alegraria com a sentença de 19 de outubro de 1988, cujo excerto transcrevemos abaixo:
“Areth of Norte Lake nasceu, em 19 de outubro de 1979, numa terra de sonhos e fantasias, Brasília. Veio para São Paulo, lugar onde os sonhos se alternam com a pesadez do dia a dia e as fantasias de cada um não vestem outra máscara nem no carnaval.
Por isso Aretha não tinha uma clara idéia do que é carnaval. Sabia que eram uns dias em que as pessoas mudavam um pouco o comportamento, como na semana santa. Não tinha motivo para concordar com Júlio Camargo, que sofismara: “O carnaval é uma amostra, na terra, de como será o inferno no céu”.
Não gostava de carnaval, de semana santa, de semana disso, semana daquilo.
Percebeu que era o carnaval de 1988 quando viu em casa aquela agitação que antecede uma viagem... e seus retiros. E lá se foi para mais um.
Não levou sonhos e bagagens, malas e fantasias. Levou os encantos que fazem perpetuar a vida. Atirou-os, como se atira inapelavelmente um lencinho branco, ao vizinho de cela e entre eles aconteceu sem ai e au o velho diálogo de Adão e Eva que Machado de Assis flagrou entre Brás Cubas e Virgília.
O primo de Snoopy não resistiu e, porque “a carne só é fraca enquanto pode ser forte” (Mauro Mota, “Antologia em Verso e Prosa”), o muro não foi obstáculo para os saltos de seu coração. Foram felizes, carnavalescamente felizes.
Hoje Aretha vive feliz com os filhos e deles não se quer apartar, que “nenhum filho entre os filhos é demais” (Nestor Vítor, “As Três Garças”). Tem idéia mais alegre do arnaval e espera chegue logo o próximo, embora não tenha sido a respeito dela que Maiakovsky escreveu:

“Dizem que em alguma parte
- parece que no Brasil –
existe um homem feliz”.
Mal sabe que depois do acontecido os cuidados para que não cruze devidamente serão redobrados.
É que a doutora Sheila, do ângulo estritamente humano e com toda a razão, não aprovou a gravidez de Aretha e quer ressarcir-se das despesas que teve.
O Cão-de-Ló, cujo nome sugere a melhor das hospitalidades, não se exime da obrigação de indenizar, por provar que Sheila não lhe avisou do cio da ilustre hóspede (sua certidão de nascimento dá inveja a muito quatrocentão). Ficou demonstrado que o período fértil das cadelas não é tão facilmente identificado. Por isso, nem todo dono de cachorra o conhece e não é razoável exigir dele a iniciativa da informação, até porque, em princípio, pode o cio surgir durante a estada no canil. Quem deve melhor conhecer cães são os tratadores do canil.
Se a informação não foi prestada,deve tê-la prestado a agitação dos machos desassossegados pelo perturbador de Aretha. Um veterinário disse em audiência que é o macho que identifica o cio da cadela. Qualquer menino sabe que cachorro não espera hora nem escolhe lugar diante da fêmea fértil, age justamente de maneira oposta à dos humanos.
Poderiam os tratadores prever o que ia acontecer; não previram. Por não terem previsto o previsível, agiram com culpa. A responsabilidade da ré decorre da culpa de seus empregados.
(Os cachorrinhos se amando
E nós, cachorrões, julgando.
Na poesia, Bandeira,
Vou acabar me agarrando).
As despesas relativas à consulta, à radiografia e ao parto estão comprovadas. As atinentes à desvalorização da linhagem, não (cf. depoimento do veterinário).
Em face do exposto, julgo procedente o pedido para condenar a ré ao pagamento, à autora, de Cz$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil cruzados) corrigidos monetariamente desde 29.7.88 e acrescidos de juros de mora calculados desde 29.8.88. A ré pagará as custas processuais e honorários advocatícios que arbitro em quinze por cento da condenação.

Vê-se, na sentença transcrita, que o Juiz, ainda que presentes dispositivos legais autorizadores, procurou encontrar o justo meio, valendo-se, tanto quanto possível, da eqüidade para julgar a questão. Em suma, com bom humor e sabedoria, soube colocar a questão dentro de princípios básicos de justiça, em que a observação do mundo animal, e sua comparação com a sociedade humana, mostra como é possível deliberar com a reta razão. Aristóteles certamente se sentiria homenageado.



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[1] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2005, 4ª ed., pág. 119
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 187
[3] idem, p. 188
[4] ibidem, págs. 257/8
[5] CAMPS, Victoria. Virtudes públicas. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 1996, p. 35, apud BOTO, Carlota, Revista Videtur 16, 2002, disponível em http://www.hottopos.com/videtur16/carlota.htm .
[6] idem
[7] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 268/9

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