sexta-feira, 8 de agosto de 2008

O evangelho de Lucas - parte 37

Lucas começa o capítulo 22 situando no tempo os momentos finais da missão de Jesus neste mundo. Era a festa da Páscoa (v. 1), e os principais sacerdotes e os escribas conspiravam para matar Jesus (v. 2). Aqui Lucas propõe um contraste imediato e marcante entre a Páscoa judaica, tal como recebida da tradição veterotestamentária (Êxodo 12), em que a primeira Páscoa havia acontecido na noite da morte dos primogênitos do Egito, a décima e última praga do Senhor sobre os opressores de Israel, em que um cordeiro puro era sacrificado para proteger os judeus. Agora, eram os seus principais sacerdotes que preparariam outro cordeiro, o Cordeiro de Deus, para o sacrifício, como bem lembra Paulo em 1ª Coríntios 5:7 ("Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós"). Para tanto, contam com a influência de Satanás em um dos discípulos mais próximos de Jesus, Judas (v. 3), que foi em busca dos conspiradores (v. 4), vender a sua lealdade a Cristo (v. 5). É certo que Judas tinha entendido mal as palavras de Jesus. Talvez realmente visse nEle alguém enviado da parte de Deus, afinal havia sido testemunha de muitos de seus sinais e prodígios. Talvez, imbuído de alguma espécie de messianismo político, quisesse apressar uma revolução libertadora do jugo romano mediante a entrega de Jesus aos religiosos (v. 6). Imaginava, muito provavelmente, que Jesus usaria todo aquele seu poder magnífico para vencer os opressores tanto romanos como judeus. Entretanto, destoa o fato de ter aceito dinheiro para "vender" o Mestre. Que isto cumpre a profecia de Zacarias 11:12, não há dúvida, e reforça também o que diz Jesus em João 17:12, "Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse". É triste o destino de Judas, portanto. Ele se enganou sobre o tipo de liberdade que Jesus pregava e representava.

Chega, então, o dia da Festa dos Pães Asmos, a Páscoa (v. 7). Jesus incumbe João e Pedro de prepará-la para o seu grupo de discípulos (v. 8). Eles lhe perguntam onde se reuniriam (v. 9), ao que Jesus responde que encontrariam um homem com um cântaro de água na entrada da cidade, e deviam segui-lo até a casa onde ele entrasse (v. 10), e então diriam ao dono da casa uma espécie de senha (v. 11), e ele lhes mostraria um cenáculo espaçoso e mobiliado, onde deviam fazer os preparativos (v. 12). Os dois discípulos se puseram a caminho, e tudo aconteceu conforme o Mestre lhes havia predito (v. 13). Aqui percebemos que, a exemplo do que ocorreu na entrada triunfal em Jerusalém (Lucas 19:28-34), Jesus se precavera com uma rede de discípulos que utilizava sinais e códigos secretos naqueles momentos difíceis de perseguição. A igreja nascente voltaria a usar esses códigos secretos pouco tempo depois, como o símbolo do peixe para identificar os cristãos, mas é interessante ter uma idéia de como a situação de Jesus e seus discípulos se complicava à medida em que os eventos finais se aproximavam. Eles se reúnem, então, para festejar a Páscoa (v. 14), e Jesus se diz ansioso por compartilhar aquele momento e lhes prediz, de novo, o seu sofrimento (v. 15). É surpreendente que o próprio Deus-Homem reconheça a sua ansiedade para que aquele dia chegasse, mas isto também nos revela a sua plena humanidade. Era a última vez que dividiria uma refeição com seus amigos neste mundo (v. 16), e tomou um cálice, repartiu o vinho entre seus discípulos (v. 17), pois só beberia vinho novamente na sua segunda vinda (v. 18). Em seguida, parte e reparte o pão, simbolizando o seu corpo que seria oferecido por nós, e pede que eles repetissem isto posteriormente, em memória dEle (v. 19). Da mesma maneira, relaciona o vinho ao sangue que derramaria em favor de nós (v. 20), mas ainda diz que o traidor estava à mesa com Ele (v. 21), alertando sobre o seu triste destino (v. 22), o que provoca uma dúvida cruel nos seus discípulos, que se indagavam a qual deles o Mestre se referia (v. 23).

Parece totalmente fora de propósito o que vem a seguir, mas da afirmação feita pelo próprio Jesus, de que havia um traidor naquele recinto, isto numa época de enorme perigo, eles passam a discutir qual deles parecia ser o maior (v. 24). Jesus chama a atenção deles para a futilidade do debate (v. 25), dizendo-lhes que agora a lógica era outra: o maior devia ser como o menor, e aquele que dirige como o que serve (v. 26). Mostra-lhes, ainda, que Ele próprio estava servindo-lhes (v. 27) e reconhece que eles tinham permanecido com Ele durante suas tentações (v. 28). Por isso, o Reino que o Pai lhe confiara Ele agora confia aos discípulos (v. 29), que, juntamente com Jesus, julgarão as dozes tribos de Israel no dia final (v. 30). A conversa toma outro rumo, ainda, quando Jesus adverte Pedro de que Satanás havia pedido para cirandá-lo como trigo, ou seja, peneirá-lo (v. 32), mas o Mestre havia rogado por ele para que a sua fé não desfalecesse (v. 33). Esta situação lembra a do primeiro capítulo de Jó, em que Satanás requer a Deus que possa afligir a seu servo, tirando-lhe absolutamente tudo o que tinha, inclusive os filhos, mas com exceção da vida, para ver se sua fé era preservada. Pedro estava diante daquele que era o Todo, o Deus absoluto, cuja presença física lhe seria tirada dentro em breve. Mesmo assim, Pedro se arvora com condições de enfrentar o desafio (v. 33), no que é advertido mais uma vez por Jesus, de que 3 vezes o negaria antes que o galo cantasse na manhã seguinte (v. 34). Em, seguida, Jesus lhes diz que o tempo em que saíam pelos campos, totalmente desprovidos de qualquer conforto ou segurança, haviam terminado (v. 35). Agora, precisavam de alforjes, sandálias e espadas (v. 36), já que a profecia de que seria contado entre os malfeitores (Isaías 53:12) também seria cumprida (v. 37). Os discípulos arranjaram rapidamente duas espadas (v. 38).

Vem, então, o momento da prisão de Jesus. Diz Lucas que, "como de costume", ele foi para o Monte das Oliveiras (v. 39). Chegando lá, pediu aos seus discípulos que orassem para evitar entrar em tentação (v. 40). Recolheu-se um pouco mais adiante para ajoelhar-se e orar (v. 41), dizendo a frase que ficou célebre: "Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua" (v. 42). O cálice lembra o sofrimento, a desolação, a ira de Deus contra o pecado do homem (Isaías 51:17, Ezequiel 23:33). Jesus o conhece, e sabe o que lhe está reservado, mas se submete à vontade de Deus Pai. Aqui a natureza humana de Jesus se revela. Como homem, sem pecado, sentiria na própria carne, a ira de Deus contra o pecador. Alguns dizem que os vv. 43 e 44 não constavam do texto original e foram interpolados posteriormente. Neles, um anjo aparece para confortar Jesus, e este entra numa agonia tão profunda que chega a suar sangue. Este fenômeno raríssimo, chamado tecnicamente de hematidrose, pode acontecer em situações de extremo stress. A literatura médica registra muito poucos casos, geralmente associados aos estigmas, que sempre têm um fundo religioso. Há um artigo recente no The American Journal of Dermatopathology, cujo abstrato pode ser acessado aqui.

O fato de Lucas tê-lo registrado advoga em favor da canonicidade desses dois versículos. Afinal, ele era médico e sempre teve um, digamos, olho clínico para situações como essa. O abatimento era geral, tanto de Jesus como de seus discípulos, que provavelmente estavam muito assustados. Ao retornar da oração, o Mestre achou-os "dormindo de tristeza" (v. 45), e chamou-lhes a atenção, dizendo que não era hora de dormir, mas de levantar e orar para não cair em tentação (v. 46). Mal acabou de falar, uma multidão (composta de sacerdotes, capitães do templo e anciãos, cfe. v. 52) se aproximou com Judas à frente, que o beijou (v. 47). Jesus ainda acentua a traição com um beijo (v. 48), enquanto os discípulos se preocupam com a espada (v. 49), tendo um deles (Pedro, segundo João 18:10) cortado a orelha do servo do sumo sacerdote (v. 50). Jesus intervém, acalmando os ânimos e curando a orelha do ferido (v. 51), mas aproveita para censurar seus perseguidores, por trazerem um aparato daqueles para prendê-lo (v. 52), quando poderiam tê-lo feito no templo. Prender alguém de noite, culturalmente falando, revela covardia, tocaia, alguém que age na base da traição. Os artigos 245 e 293 do Código de Processo Penal brasileiro, por exemplo, limitam as prisões noturnas. A noite é o domínio das trevas, "a vossa hora", como Jesus disse aos seus acusadores (v. 53).

Jesus é levado, então, para a casa do sumo sacerdote, com Pedro seguindo-o de longe (v. 54). Começa, então, a sucessão de negações que este vai enfrentar. Primeiro, uma criada o reconhece (v. 56), depois outro (v. 58) e mais outro (v. 60). Não só as feições, mas o sotaque carregado de "caipira" galileu o denunciava (v. 59). Três vezes Pedro nega a Jesus, e finalmente o galo canta (v. 60). Foi nesta hora que Jesus, o Senhor (como Lucas faz questão de afirmar, usando a palavra grega κύριος - kurios ) se vira para mirar nos olhos de Pedro. Até então, Lucas fizera um uso cuidadoso desta palavra, κύριος - kurios , mas desde o capítulo 20, verso 42, quando Jesus cita o Salmo 110:1 ("Disse o Senhor ao meu Senhor"), ele faz questão de associar este termo Senhor, divinamente revelado e confirmado, ao próprio Jesus. Dentro de todo o contexto do capítulo 22, onde as naturezas humana e divina de Cristo aparentam estar em conflito, o evangelista vai pouco a pouco realçando uma e outra, para mostrar tanto a complexidade como a maravilha da Trindade e da Encarnação. Pedro se lembra, então, do aviso que recebera do próprio Mestre no cenáculo, e se retira chorando amargamente (v. 62).

Os guardas passam a zombar de Jesus, espancando-o (v. 63), e escarnecendo dos seus poderes divinos (v. 64), blasfemando (v. 65). Como Isaías profetizara 700 anos antes (53:7), "ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca". Só de manhã bem cedo é que Jesus é levado ao Sinédrio (v. 66), onde procuram fazê-lo dizer que era o Cristo (v. 67), mas Jesus se esquiva (v. 68), mas, reforçando esta idéia que Lucas vem dando no contexto, sobre a profundidade da Trindade e da Encarnação, diz em seguida que a partir daquele momento o Filho do Homem estaria sentado à direito de Deus Todo-Poderoso (v. 69). Todos os sacerdotes, que obviamente já haviam ouvido a sua pregação antes, perguntam se Jesus era o Filho de Deus, ao que ele responde: "Vós dizeis que eu sou" (v. 70). Eles não perceberam isso na hora, mas não estavam dizendo apenas com a boca, mas com o triste papel que desempenhavam no martírio e no sacrifício de Cristo. Entendem que esta declaração é suficiente para incriminá-lo, eles preparam a entrega do Mestre a Pilatos, o que se dá no início do capítulo 23.

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