sexta-feira, 26 de junho de 2009

As crônicas de Marvin - 11

A busca pelo reconhecimento


Embora estivéssemos em época de seca, havia algumas nuvens no céu ainda. Às vezes a lua se escondia por trás de alguma nuvem, mas nada que pudesse impedi-la de reinar na escuridão da noite, deixando tudo bem mais claro. À medida que me afastava do núcleo da festa, menos ouvia o barulho de pessoas, e mais ouvia os grilos, em sua religiosa sinfonia noturna. Às margens do lago, eventualmente algum sapo se juntava a eles.
Naquela mesma margem, uma pessoa olhava fixa e melancolicamente para a água. Sua identidade ficava cada vez mais clara para mim, embora ela estivesse bem diferente do que eu estava acostumado a ver... Eu tentava imaginar o que ela fazia ali então o fato dela parecer ser uma pessoa solitária como eu passou pela minha cabeça...
- A... Amanda?
Ela se assustou tanto, que eu poderia jurar que ela tinha visto um fantasma, caso ela acreditasse nisto. Com o susto, ela se virou para mim, então pude perceber como estava diferente. Usava um vestido azul longo, que a deixava com ares de princesa. Agora estava com cabelos soltos, revelando belos cabelos cacheados, que combinavam muito bem com seus olhos verdes, não mais escondidos por aqueles óculos que ela sempre usava. Estava realmente bonita, embora me parecesse triste.
- Ma... Marvin? Irmão, o que faz... aqui?
- Bem... Eu vim aqui refletir um pouco sobre a vida... Puxa irmã, você está muito bonita hoje!!
Seu rosto ficou levemente corado pelo elogio. Enquanto desviava seus olhos de mim, sorria discretamente. Um sorriso que naquela noite, me parecia muito mais belo.
- Obrigada, irmão... Você também está muito elegante.
- Obrigado... Sabe, eu queria ficar sozinho, mas pensando bem foi até bom te encontrar por aqui. Mas me diga, irmã, o que faz sozinha por aqui?
Ela pensou um pouco, depois me respondeu.
- Bem, eu não tenho tantos amigos assim... Então resolvi caminhar por aí...
- Ora, por quê não me procurou? Eu sou seu amigo, você sabe disto...
- Sim, mas... Bem, você já estava acompanhado pela irmã Priscila, então resolvi não incomodar...
O sorriso do rosto dela desapareceu por alguns instantes. De certa forma eu a entendia, assim como eu, ela tinha dificuldade em se aproximar das pessoas. Eu não tinha sido um bom amigo para ela ainda... Só tinha feito promessas e eu, como testemunha de Jeová desprogramada, sei que promessas não cumpridas são frustantes. Estávamos longe de todos. Por isto, sem receios, resolvi pegar na mão dela, olhando em seus olhos:
- Irmã, sinto muito por te deixar sozinha assim... Te prometo que serei um amigo melhor daqui em diante... E para provar isto, farei companhia a você o resto da noite...
Pude perceber que mais uma vez seu rosto ficou vermelho, quando peguei em sua mão. Falei em amizade para não ser mal-entendido...
- Ah... Ma... Mas, irmão, não precisa me acompanhar... Tem muitos irmãos aqui para você dar atenção...
- Sim... Mas de todos eles, você é a mais importante para mim.
Deixei ela sem palavras com isto. Mas eu entendia que o que eu dizia era o que ela precisava ouvir. Mais do que ninguém, eu a entendia. Eu sabia que uma pessoa solitária, em seus momentos de baixa estima, precisa de elogios, precisa se sentir importante para alguém. Era aquilo que eu estava precisando naquele momento, e que as bajulações das outras pessoas da festa não conseguiram transmitir para mim.
Então sorri para ela, soltando a sua mão lentamente.
- Não se preocupe. Gosto de sua companhia.
Ela então me olhou, ficando em silêncio por um tempo... Então mais uma vez um sorriso se formou em seu rosto...
- E então, o que achou da festa, irmão?
- A festa?? Hummmm... Bem, para te dizer a verdade, quando o irmão Osvaldo entrou naquela estrada de chão, eu pensei que estava sendo sequestrado, hehehehe... A festa foi uma surpresa e um alívio...
Ela sorriu em resposta.
- Ah, mas vai me dizer que não gostou? Trabalhamos duro para arrumar tudo!!
- Hummm, se gostei? Deixe-me pensar...
- Ei, não seja malvado!!!
- Hahaha, está bem... Claro que gostei. Ninguém nunca fez uma festa para me homenagear...
- Entendo como se sente... Ninguém também nunca me disse que sou importante... – disse, sorrindo.
- Sério? Nem sua família?
- Nem eles... Sabe, eles brigam muito entre si, e tem aquele problema com meu pai... Eu sempre quis ter uma família normal, mas nem todo mundo tem este privilégio...
- E... Namorado?
- Ah, irmão... eu nunca namorei ninguém...
- Sério? Nem antes de estudar a Bíblia (eu odiava esta expressão usada por testemunhas de Jeová como sinônimo de “iniciação”, mas eu tinha que usar o vocabulário delas)?
- Não... Eu sempre fui tímida... e você?
- Ah, ainda estou tentando descobrir se o que tive foi um namoro ou não... Eu mais financiava os gastos dela do que outra coisa...
- Hummm... Você está falando daquela moça...
- Sim, a Kátia... Nem me lembre dela...
- É engraçado como as pessoas hoje em dia gostam mais dos meios do que os fins... - disse ela pensativa.
- Hum? Como assim?
- Bem, o natural seria amar pessoas, pessoas por completo. Mas as pessoas parecem gostar mais de coisas secundárias. Dinheiro e o que você faz com ele deveria servir apenas para manter o amor, seja qual for o tipo de amor... Mas eu já presenciei coisas absurdas, como uma mãe ensinando sua filha de 5 anos a procurar homens com muito dinheiro... As pessoas deixaram de ser a finalidade de qualquer relação, para serem os meios.
- Hehehe, você tem razão.
- Além do mais, a gente tem o péssimo hábito de procurar pessoas perfeitas, livres de defeitos... Acho que por isto muitas pessoas se decepcionam umas com as outras... Por isto eu disse que deveríamos ver a pessoa por completo, e esperar que ela possua alguma coisa que vai nos incomodar... Todos somos assim, cheios de manias e defeitos. Deixamos de procurar pessoas para procurar características... Andamos de um lado para outro, nunca satisfeitos. Mas eu acho também que muita gente consegue amar pessoas, e este sentimento acaba acima de qualquer defeito... Elas se completam, de uma forma inexplicável.
- É por isto que dizem por aí que o amor é cego...
- Provavelmente... – disse ela sorrindo.
Continuamos caminhando, contemplando a lagoa, que agora estava iluminada pela luz da lua.
- Veja!! – disse Amanda.
Eram cisnes. Provavelmente o dono da chácara os criava, para “enfeitar” mais o lugar. Os coitados estavam acordados, provavelmente por causa do barulho da festa. Alguns, sem ter o que fazer, resolveram até nadar. Amanda os observava com alegria, dizendo como eram belos. Ela tentou se aproximar deles para vê-los de perto, enquanto eu, parado no mesmo lugar, a observava de longe. Não muito tempo, ouvi um barulho em alguns arbustos ali perto. Ainda fui capaz de perceber o vulto humano que saía correndo dos arbustos, voltando para a festa. Estavam nos observando, como era de se esperar.
- Ei, acho melhor voltarmos... Antes que pensem algo errado de nós...
Amanda então se virou, voltando para onde eu estava. Caminhamos de volta, subindo um pequeno morro ali perto. Já estávamos perto novamente da festa...
- Irmão Marvin...
- Ei... me faz um favor?
- Hum? Sim, claro, o quê seria?
- Me chame apenas de Marvin...
Ela ficou um pouco vermelha com isto...
- Hummmm... Es... está bem então... Marvin...?
- Sim, Amanda?
- Eu só queria te dizer que não me importo muito sobre o que eles vão pensar de nós...
Certamente eu deveria estar mais vermelho que ela agora... Não esperava este comentário... Foi a multidão que impediu que nós continuássemos esta conversa. Havíamos chegado, e havia muita gente ali, dançando, conversando...
- Ei, Amanda, você já comeu?
- Ainda não... Vamos?
Por onde passávamos as pessoas paravam para nos observar, como se tivéssemos fazendo algo muito errado. E quem sabe era isto o que passava pelas mentes torpes deles. Amanda tinha razão, não valia a pena se preocupar com o que tais mentes poderiam estar pensando...
- Que gracinha os dois juntos!!! – disse alguém.
É isto aí... Para mim chega... Não queria fazer isto, mas serei obrigado a fazer. Além do mais, vou conseguir movimentar a festa mais... Tipo, festa de irmãos era sempre a mesma coisa: comer, dançar (para os casados), conversar... Tudo girava entre estes três verbos. Vamos mudar um pouco...
- Irmãos, gostaria de dizer algo a vocês...
A Amanda me olhou assustada, um pouco envergonhada também.
- Marvin, o quê você vai fazer?
- Não se preocupe, Amanda... É algo que há muito tempo precisava dizer...
A festa deveria estar tão chata já, que todo mundo se reuniu em minha frente em um piscar de olhos. Nem em treinamento de bombeiros se vê tanta eficiência.
- Muito bem, irmãos. Primeiro, gostaria de agradecer esta maravilhosa festa. Sei que todos trabalharam duro para isto.
- Não foi nada, irmão!! – respondeu alguém da multidão.
Estavam todos alegres. Que ótimo!
- Mas isto não dá o direito a ninguém ficar especulando sobre o que eu faço ou deixo de fazer... Por quê cada um não se ocupa de seus próprios afazeres, e deixa para se preocupar com minha vida, na medida que eu partilhar dela com os outros? Eu digo uma coisa: se vocês possuem tanto tempo livre, certamente poderiam dedicar-se mais tempo ao seu estudo pessoal. Se estivessem estudando mesmo, eu tenho certeza que saberiam que fofoca é algo desaconselhável por Jeová, como a primeira carta de Pedro, capítulo 4 versículo 15 mesmo serve de exemplo.
Uma multidão de gente sem-graça estava na minha frente. Tinha feito meu papel. Logo um rapazinho se levantou, dizendo:
- Ah, que paia. Pensei que ele fosse se declarar!!
- Ei, você! – disse eu, apontando o dedo para ele.
- O que foi? – respondeu com desprezo.
- Já que você é tão engraçadinho, vamos fazer o seguinte. Na entrada tem um espelho. Vá até lá e tire par ou ímpar com ele até dar ímpar!
- Ok, estou indo...
E lá se foi o garoto, sem se dar conta do problema que teria...
- Mais alguém?
Ninguém respondeu.
- Tudo bem, então podemos voltar aos festejos, sim?
Todo mundo então voltou ao que estava fazendo, sem ficar nos olhando com aquela cara de curiosidade tejotina. Fomos até o final da fila, onde mais uma vez as pessoas quiseram ceder sua vez para nós, o que rejeitei de imediato. Não muito tempo depois, alguém conhecido apareceu.
- Ah, então aí estão os dois. Marvin, você está mal-humorado, hein!! Pagando sapo em festa é coisa de gente chata...
- Sei... E brigar por ciúmes, Estêvão? Seria coisa de playboy bêbado, não é?
- Hahaha, Marvin, você é engraçado mesmo... Ciúmes, eu?? Eu estou sendo apenas um líder exemplar! Mas deixa pra lá... Ei, Amanda? Puxa, como você está bonita hoje!!! Eu tinha vindo ver quem estava com o Marvin... Já que é você, que tal se juntar a nós ali para conversar?
Como é? Isto era muito estranho... Estêvão nunca deu muita moral para a Amanda... Agora que ela estava comigo e estávamos conversando, ele veio convidá-la? Ele não estava com a Priscila?
Era uma atitude muito suspeita. Eu não poderia deixar de suspeitar de Estêvão, principalmente depois dos acontecimentos daquela manhã. Qual o interesse dele em me deixar sozinho?
- Irmão Estêvão... Hummm, sinto muito, mas não posso. Estou acompanhando o Marvin. Fica para uma outra vez...
- M...Marvin? – disse ele, surpreso.
Eu também me surpreendi com a resposta, o que me fez estimar mais ainda a companhia daquela jovem.
- Ahh... Você tem certeza?
- Sim, tenho. Gosto muito da companhia dele. – respondeu sorrindo.
- Hummm, então está bem... Até mais.
Estêvão nos deixou então, com um ar de seriedade. Muito esquisito. Terei que vigiá-lo. De todos que conheço na organização, ele é o único que possui poder suficiente para mandar irmãos me vigiarem.
Finalmente nos servimos, depois nos sentamos. Conversamos ainda sobre muitas outras coisas. Aos poucos, as pessoas com carro iam deixando o lugar. Eu não tinha percebido quando cheguei, mas haviam alguns ônibus do lado de fora, alugados para aqueles que não tinham carro. Amanda tinha vindo em um deles, mas não deixei que voltasse ainda.
- Pode deixar, hoje te acompanho até em casa.
- Mas... Não há espaço no carro do irmão Osvaldo para mim.
- Sem problemas. Eu aviso ele que vou voltar de taxi.
Assim, avisei ao irmão Osvaldo que voltaria de taxi. Ele insistiu um pouco para que eu fosse com eles, mas recusei educadamente.
O taxi não demorou muito. Então nos dirigimos à entrada da chácara, onde um rapaz ficava apontando a mão para o espelho.
- Ei, não tem jeito de sair ímpar aqui não!!!
Tive piedade dele, dispensando-o. Entramos então no taxi, e voltamos pelo mesmo caminho que percorri com o irmão Osvaldo. As ruas estavam mais vazias, já era tarde. Paramos em frente à casa da Amanda.
- Muito bem, acho que por hoje é só...
- É... Marvin... Muito obrigada por esta noite. Eu gostei muito de conversar com você...
- Hehehe, sou eu quem agradeço... Estava um pouco triste quando te encontrei... E fiquei feliz de poder te acompanhar... Espero fazer isto mais vezes, hehehehe.
Ela sorriu, envergonhada. Então peguei novamente sua mão, e a beijei.
- Boa noite, Amanda.
- Boa noite, Marvin.
Ela logo entrou em casa e eu segui meu caminho, à pé mesmo, diante dos olhos daqueles que escondidos, me vigiavam...

Ponto de vista alternativo, 7 de setembro de 2051, 23:00

Era um parque, imerso pela escuridão da noite. Alguns postes faziam a precária tarefa de iluminar o local por onde passam as pessoas. Mas ninguém era suficientemente louco de passar por ali naquela hora. Somente as corujas em busca de alimento estavam por ali.
No entanto, 12 figuras encapuzadas estavam ali, de pé. Loucos? Talvez...
- Muito bem, parece que muita coisa aconteceu desde nossa primeira reunião... – disse um deles.
- Sim... No domingo passado, nossos espiões perderam o jovem de vista...
- Humpf... Incompetentes... Eu não podia esperar outra coisa de pessoas que se preocupam mais com a comemoração do Natal do que pregar contra a ganância... Eles não perceberam que o jovem estava despistando eles não?
- Segundo seu relatório, a velocidade alta do moto-taxista não os preocupou, já que todos os moto-taxistas são incontroláveis.
- Humm... Isto é verdade. Mesmo assim, eles precisam ser mais espertos. Provavelmente agora, o jovem está desconfiado... Mas este não é o motivo principal de nossa reunião... Yekhezqe'l conseguiu as informações que buscávamos... Por favor, Yekhezqe'l, compartilhe conosco o que você descobriu.
- Muito bem... O jovem chamado Marvin é realmente uma pessoa genial. Ele fez o curso técnico em eletrônica, depois fazendo engenharia elétrica. Sempre obteve as melhores notas, e sempre surpreendia os professores. Um currículo exemplar, foi financiado por grandes empresas em seus trabalhos...
- Não é por menos que este jovem conseguiu o controle sobre a Torre de Vigia...
- Sim, Moshe... Mas sua vida profissional deu um reviravolta com a morte dos pais... Ele abandonou as grandes empresas e passou a trabalhar com pequenos empregos. Passou a trabalhar com eletrônica apenas como passatempo. Ele ficou bem solitário depois disto... Nunca foi uma pessoa de grandes amizades. Agora sem os pais, ficou completamente só. Depois de uns dois anos assim, começou a estudar com as testemunhas de Jeová.
- Hummm, entendo... Provavelmente a morte dos pais despertou seu lado espiritual... Bem, há alguma coisa que podemos usar contra ele?
- Não. A vida dele foi muito pacata... Porém, por ser um aluno exemplar, ele tinha alguns rivais... Talvez alguns deles poderiam nos ajudar...
- Humm... é uma possibilidade... veja se você consegue entrar em contato com eles... E vamos ter que contar com isto...
- Espere! - Disse outro vulto.
- Deseja acrescentar alguma coisa, Eliyahu?
- Sim... Uma informação muito interessante...
- Pois bem, diga-nos...
- Não sei se é de conhecimento de todos, mas no último dia 3, as testemunhas da cidade de Goiânia organizaram uma festa para os dois “escolhidos”... Hehehehe...
- Sim, eu fiquei sabendo. – respondeu Moshe.
- Bem, gostaria de mencionar que nossos espiões ali descobriram que o jovem não está tão sozinho assim...
- Como é que é?
- Parece que ele estava se dando muito bem com uma jovem chamada Amanda Alves Rezende... Eles relataram até que ele a levou para casa...
- Hummmm, isto que você está me dizendo é muito interessante... Ela sabe alguma coisa sobre as ações dele?
- Não...
Houve silêncio por um instante... Este foi quebrado apenas pela risada, risada de satisfação de Moshe, que aos poucos foi ficando mais alta. Rapidamente os outros entenderam o plano...- Um homem sem família é difícil de controlar... Mas um homem com uma amada... Vigiem ela também... Ela será nossa chave, cavalheiros. Com ela, finalmente os Profetas de Sião controlarão a Torre de Vigia com mãos de ferro...

O fim de uma era


Dizem que os mitos são eternos, mas o Michael Jackson morreu ontem, como o mundo inteiro já sabe. 

A sua pretensa eternidade agora será colocada à prova. 

Mesmo que a sua metamorfose (e decadência física) fosse visível a olhos nus, e o fim - de certa forma - esperado, ainda fomos pegos de surpresa, talvez porque não tenhamos imaginado a exata medida do que ele significou para toda uma geração. 

Independentemente de se gostar ou não do trabalho dele, e das considerações morais sobre as polêmicas e acusações criminais que envolveram sua vida, o fato é que ele marcou uma época, com o seu jeito único de cantar, dançar e interpretar. 

Michael Jackson foi o símbolo da transição, seja do LP para o CD, da rádio para o vídeo clip, de um mundo em que as mudanças eram lentas e graduais, para a era da tecnologia que torna tudo imediato, instantâneo e - consequentemente - efêmero. 

É plausível argumentar que ele tenha sido um elo importante na enorme engrenagem que tornou possível a abertura da caixa de Pandora do consumismo desenfreado, do sucesso passageiro e da multiplicação de celebridades que duram apenas os 15 minutos de fama. 

Nesta perspectiva, talvez tenha cabido a Michael Jackson o papel de último representante de uma era em que as músicas (e os ídolos) não envelheciam da noite para o dia, e que os ídolos pairavam acima do bem, do mal, e do tempo. 

Ainda havia espaço para a criatividade, o diferente, o inesperado, mesmo que o inusitado às vezes fosse sinônimo de bizarro. 

Talvez por isso a notícia da sua morte tenha tamanha repercussão e nos cause tanta comoção, pois constatamos que envelhecemos e um pedacinho da história de cada um - boa ou má - também foi embora na noite passada.

Smooth Criminal, minha preferida

quinta-feira, 18 de junho de 2009

A fé que Deus honra

AS TRÊS CAPINAS

Adriano é um irmão humilde e trabalhador de uma igreja batista do interior do Estado de São Paulo. Casado com Divanete, ambos levam a vida típica da gente simples do chamado Brasil profundo, lutando com as dificuldades e sempre buscando uma renda extra para fazer frente aos gastos da família. Adriano tem um trabalho digno e aproveita os dias de folga para fazer alguns bicos e ganhar um dinheirinho honestamente. Um desses bicos é capinar terrenos baldios, algo muito necessário nas cidades do interior. Num dia muito quente, Adriano foi capinar um terreno e, conversando com o pastor da sua igreja, este lhe aconselhou que usasse um chapéu, pois o sol estava muito forte naquele dia, mas Adriano não lhe deu ouvidos. Foi capinar com a cabeça desprotegida e quando estava na metade do serviço, percebeu - tarde demais - que o pastor tinha razão. O sol estava de "rachar mamona", como se diz na roça, e ele já estava se sentindo mal, se expondo aos riscos de uma insolação. Não teve dúvidas: parou o serviço e orou, pedindo a Deus que lhe ajudasse a suportar o calor. Pouco depois, capinando uma moita, viu que atrás dela, no meio do mato, estava um boné novinho em folha, o que o deixou muito feliz. Parou o serviço novamente e deu glórias a Deus por ter respondido a sua oração.


Algum tempo depois, surgiu outro terreno para capinar, cujo proprietário lhe havia pedido urgência, pois precisava começar uma obra no dia seguinte. Já declinando a tarde, a enxada que Adriano usava soltou a cunha, e a gambiarra que ele fez não ajudava muito, já que ele mal conseguia capinar com aquela peça bamba. Recriminou-se por não ter pego uma enxada melhor. Não teve dúvida, parou tudo e orou pedindo ajuda a Deus. Pouco depois, deu uma enxadada numa quiçaça e ali, para sua grata surpresa, tinha uma cunha semi-enterrada, que cabia perfeitamente na sua enxada. Diante do achado, levantou as mãos ao céu e glorificou a Deus efusivamente, o que deve ter assustado a vizinha que via pela janela a cena insólita de um homem cansado, no fim da tarde, agradecendo a Deus por uma cunha. Pelo canto dos olhos, assim meio de soslaio, Adriano só teve tempo de ver a cortina se fechando rapidamente.


Passados alguns dias, outra pessoa pediu a Adriano um serviço de urgência, que ele não podia recusar nem fazer num dia só sem a ajuda de outra pessoa. Combinou com o seu irmão, mas este lhe avisou a tempo que não poderia ir. Chamou um rapaz que às vezes lhe ajudava, mas no dia e hora combinados, ele simplesmente não deu as caras. Lá estava o terrenão enorme pedindo enxada, e só Adriano enfrentando o que lhe parecia agora um latifúndio. Decidiu-se a fazer o que podia, mas já terminava o dia e ainda faltava muito chão para capinar. Exausto e já próximo do desespero, não teve dúvida: parou tudo e clamou a Deus por socorro. Mal teve tempo de dizer o "amém", quando percebeu uma sombra estranha denunciando um vulto enorme que se aproximava. Era um homem negro, grande, mal encarado, como aquele personagem condenado à morte no filme "À Espera de Um Milagre", o que lhe deixou com um baita medo naquele ermo do sem fim. O homem se aproximou e disse:


- Ei, rapaz, você não quer que eu te ajude? Tem muito terreno ainda e eu posso te ajudar por um trocadinho qualquer...


Adriano combinou o preço com o socorro recém-enviado dos céus - que, segundo ele, era um verdadeiro trator - e terminou o seu dia feliz, levando dinheiro para casa e dando glórias a Deus.


Esta é uma história verídica...


Ouvindo esta história, eu fiquei pensando cá com os meus botões: esta é a fé que Deus honra. Não uma pseudo-fé auto-imputada, arrogante, soberba, que trata Deus como um menino de recados ou um escravo obrigado a "honrar" quem alega segui-lO, de preferência cobrindo-o de bens, mas uma fé simples, inocente, dedicada, que se dispõe e põe a mão no arado e na enxada com vontade de ser feliz, e não tem vergonha da sua condição, nem de pedir auxílio a Deus quando as coisas não saem exatamente como se pensava, e em tudo dando glória a Ele. Simples assim...

As crônicas de Marvin - 10

Baile sem máscaras

3 de setembro de 2051, 16:00

Estava novamente em casa, depois de uma longa conversa. Não foi difícil perceber que já havia pessoas me esperando, escondidas, do lado de fora. Fiz de conta que não havia percebido nada, e entrei.
Imediatamente liguei o meu computador. Enquanto ligava, peguei meus equipamentos e fui testar minha linha telefônica. Fiquei chocado ao perceber que estava realmente grampeada. Teria que tomar cuidado com conversas pelo telefone.
Quem estaria por trás disto? Quem gostaria de me vigiar? Seja quem for, tinha poder suficiente dentro da Organização para colocar testemunhas de Jeová para me perseguir... Será que alguém desconfia de algo? Ou a minha posição atual tenha despertado a curiosidade de alguém?
O único que sabia de algo era o Estêvão... Ele ocupa uma posição estratégica agora, e poderia muito bem fazer aquilo... Mas por quais motivos ele me perseguiria? Eu teria que investigar isto mais profundamente...
Voltei a meu computador, e imediatamente comecei a comprar o material necessário para me garantir: FPGAs, memórias, interfaces de comunicação. Fiquei na dúvida entre comprar microcontroladores ou DSP’s, mas optei pelo segundo, já que iria trabalhar com o processamento de alguns sinais de sensores. E eu queria deixar os FPGAs para outras aplicações. A compra feita pela internet iria demorar um pouquinho, então já deveria me virar com os componentes que eu já tinha.
Chequei o meu sistema de segurança, para ver se todas as implementações estavam funcionando corretamente. Pelo visto ninguém havia tentado entrar em casa ainda.
Resolvi então buscar todos os meus projetos disponíveis na área de segurança, e os projetos mais “perigosos”. Se queriam me enfrentar, eu levaria isto até o fim. Foi durante minha busca, que o telefone tocou. Resolvi atender, poderia ser algo relacionado com o que havia acontecido hoje.
- Olá, irmão Marvin. Aqui é o irmão Osvaldo. Como vai você?
- Oi, irmão. Estou bem... Um pouco cansado, mas estou bem...
- Puxa, espero não estar atrapalhando nada. Só queria te fazer um convite...
- Um convite?
- Sim. Você e o irmão Estêvão estão convidados para uma festa que estamos fazendo em família. Não precisa se preocupar com a locomoção, pois nós os levaremos até lá.
- Hummmm, não sei se estou a fim de sair hoje, irmão... Estou cansado, e amanhã tenho trabalho a fazer...
- Bem, tenho certeza que você vai gostar. Além do mais, se está cansado, fará muito bem em ir, e mudar a rotina um pouco...
O Estêvão ia... Talvez eu pudesse descobrir se ele estava mandando aquelas testemunhas de Jeová me seguirem.
- Hum, então está bem. Quando será mesmo?
- Às 20:00. Eu busco vocês às 19:30, pode ser?
- Combinado.

3 de setembro de 2051, 19:30

O irmão Osvaldo foi pontual, como sempre. Notei a falta de alguns membros da família dele, na verdade todos.
- Irmão, onde está o pessoal da sua casa?
- Ah, eles já estão lá. Passamos o dia lá, então não havia a necessidade de voltar todo mundo.
Seguimos até a casa onde o Estêvão estava morando. De lá, saiu uma figura toda atrapalhada, que acabava de se arrumar enquanto trancava a porta.
- Puxa, vocês vieram rápido, hein...
- Bem, nós chegamos na hora combinada, não?
- Hahaha, é mesmo... Marvin, sempre muito pontual...
- E você quando não está adiantado, está atrasado... – disse com cara de desprezo.
- Esquenta não, irmão. O importante é chegar!!
Saímos da casa dele, e seguimos uma rua escura e íngreme, até chegarmos na marginal Norte. Entramos nela e nos dirigimos para a saída para Nerópolis. Havia poucos veículos ali, a maioria caminhões que aproveitavam o pouco tráfego para adiantar suas viagens. Em pouco tempo estávamos pegando a estrada em direção a Nerópolis.
- Irmão, onde é que mora exatamente sua família? – perguntei.
- Em uma chácara aqui perto... Já estamos chegando.
Em pouco tempo, o veículo estaria entrando em uma estrada de chão, e se dirigindo para uma casa escura. Depois do que havia me acontecido hoje, dizer que os piores pensamentos não me passaram pela mente seria uma mentira deslavada. Eu já não poderia confiar que aqueles irmãos agiriam conforme o padrão. Julguei-me um tolo por ter aceitado o convite sem ao menos ter alguma cautela.
O carro foi parando aos poucos diante daquela casa. Para minha surpresa, o Estêvão parecia tão surpreso quanto eu:
- Puxa, que escuro... Tem certeza que é aqui?
- Tenho sim, irmão. Às vezes ficamos sem energia por aqui... Deve ter faltado. Mas venham, eu os mostro o caminho...
Ele desceu do carro, encostou a porta e foi adiante. Assim que descemos, ativou o alarme, trancando as portas do carro. Assim, o seguimos. Era uma chácara bem arborizada, e bem decorada. O jardim da frente era impecável, com seus arbustos bem podados, grama aparada... As famílias TJ’s não costumavam ter dinheiro para cuidar de algo assim. E isto me deixou ainda mais apreensivo.
Entramos por um portão e nos dirigimos a um pátio. Estava muito escuro para ver alguma coisa ali. De repente, uma voz começou a dizer:
- Senhoras e Senhores, finalmente nossos convidados chegaram. Sabemos como eles são importantes, e como eles têm se dedicado à nossa comunidade. Desde que o irmão Estêvão chegou de São Paulo, estávamos pensando em organizar isto. Por favor, cumprimentem eles...
Então, as luzes se acenderam, revelando uma grande multidão (que nenhum homem podia contar) que em pé, aguardava nossa chegada. E todos disseram, a uma só voz:
- Sejam bem-vindos, irmãos!
Então, a pessoa que estava com um microfone e que eu não conhecia ainda, continuou:
- Irmãos, aqui estão todas as testemunhas da cidade de Goiânia e região. Nós decidimos organizar uma festa em homenagem aos dois irmãos que estão desempenhando um papel muito importante nos planos de Jeová. Os irmãos aqui presentes concordaram alegremente de contribuir para esta homenagem.
Certamente aquilo havia me surpreendido mais do que uma possível emboscada. Para quem não deveria dar honra indevida a humanos, aquilo era um pouco demais. Mas de fato, não era muito diferente das boas-vindas dadas a Superintendentes de Distrito em visita às comunidades. No fundo, fiquei feliz... Por mais duro que seja um coração, ele sempre sucumbe a uma demonstração de afeto. E muito embora aquelas pessoas pudessem ser falsas (muitas pessoas são mesmo), ali, naquele momento, elas estavam sinceramente felizes.
Logo nos rodearam, para conversar conosco. Aquele frenesi da nossa promoção já havia desaparecido um pouco, então não ficavam à nossa volta por muito tempo. Além do mais, a comida e a bebida exercia uma atração tão forte sobre elas quanto a nossa. De fato, a fila para a comida era maior que para falar conosco.
Logo que todos nos cumprimentaram, ficamos à vontade para andar pela chácara. Era um local bem arrumado. Eu estava espantado de ver como eles conseguiram organizar e arrumar tudo em tão pouco tempo. Na verdade, um dos irmãos me contou que assim que souberam da chegada do Estêvão, ainda na sexta, já começaram a entrar em contato com outros anciãos. Como era uma festa surpresa, não falaram nada para mim ou para o Estêvão. O assunto foi discutido nas reuniões de sábado à noite ou do domingo de manhã. Em nossa congregação, o assunto foi discutido em segredo no domingo de manhã, para que nem eu ou o Estêvão ficássemos sabendo. Curiosamente ninguém ficou envergonhado de mentir para nós até chegarmos à festa.
Era uma chácara alugada. A festa estava acontecendo em um pátio grande, onde havia piscina. Mais atrás começava um gramado, que foi iluminado para caber mais pessoas. Era ali que estavam as mesas do buffet, além de outras mesas para os convidados. Nem era preciso dizer que as panelinhas se formaram rapidamente, juntando mesas.
Eles reservaram o local perto da piscina como pista de dança, já que ali havia um piso de cerâmica. Não demorou muito para que a música começasse. Como era típico aqui na região, tocou-se basicamente o velho e bom forró, devidamente selecionado pela comissão de censura às músicas do mundo. Logo aqueles que eram casados se aproximaram para dançar, enquanto os solteiros dançavam sozinhos. Na verdade as solteiras, já que as mulheres tinham mais coragem de dançar sozinhas, ou até mesmo umas com as outras. Isto era natural por aqui. Homens não tinham este costume de dançar sozinhos, eles preferiam mais ficar sentados, conversando sobre os problemas do mundo, ou os problemas que eles, testemunhas de Jeová, enfrentavam no mundo.
Como já tinha sido liberado, resolvi ir comer alguma coisa também. Caminhando até a mesa de comida, avistei dois rostos familiares... Os dois jovens que me perseguiram de manhã. “É mesmo, aqui estão todos as testemunhas de Jeová d,a região”, pensei. Era hora de tirar aquilo à limpo. Rapidamente me aproximei dos dois. Quando perceberam que eu estava próximo deles, já era tarde demais...
- Boa noite para vocês.
- Ah... hum, boa noite, irmão. – disse o primeiro.
- Boa noite, irmão... – respondeu o outro.
- Gostaria de falar com vocês... De qual congregação vocês são?
- Hummm, somos do Garavelo...
- Ah, entendo... Eu me lembro de vê-los na Anhanguera hoje... O quê faziam por lá?
- Anhanguera? Hummm...
Eles pensaram um pouco antes de continuar... Finalmente, um deles teve uma idéia...
- Ah, nós estávamos indo para a casa de um irmão, para ajudar a organizar esta festa. Por isto estávamos correndo ali para pegar o ônibus que iria para a casa dele.
- Hummm, entendi...
Claramente ele estava mentindo para mim... Era uma boa desculpa, principalmente por que eles estavam de fato falando em uma festa quando entraram no ônibus. Mas eles estavam nervosos demais, e o lugar onde descemos não era o melhor lugar para se pegar ônibus. Afinal de contas, estávamos em um terminal, por quê eles iriam sair dele para pegar outro ônibus? Os principais ônibus ali perto já entravam no terminal. Ninguém seria suficientemente estúpido de pagar uma passagem a mais sem necessidade... Ou seriam estúpidos? Eu ia perguntar outra coisa a eles, quando fui interrompido...
- Marvin?
Eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Priscila. Meus pensamentos mudaram completamente. Sua voz era suficiente para me fazer sorrir. Me virei para vê-la, deixando os dois jovens perplexos.
- Irmã? Puxa, como está bonita...
Ela estava com um vestido branco, que combinava com seus cabelos loiros. Incrivelmente bem maquiada.
- Ah, obrigada... Mas então, o que está achando da festa?
- Hum, estou gostando de tudo. Foi uma ótima surpresa.
Os dois espertinhos perceberam a brecha, e saíram de fininho. Não os veria mais na festa...
- Que bom que gostou. Foi tudo organizado muito rápido, nossa sorte foi encontrar este local tão bonito e livre para hoje.
- Puxa, não precisava de tudo isto...
- Claro que precisava. Vocês dois são pessoas muito importantes!
A velha timidez tomou conta de mim, buscando alguma coisa para falar naquela hora... Só uma coisa me veio à mente.
- E então, você já se serviu?
- Ainda não...
- Hummm, gostaria de me acompanhar? Eu dei uma olhada na mesa, e fiquei com vontade de experimentar um pouco de cada coisa...
Ela sorriu, aceitando meu convite... Então caminhamos para a fila, onde alguns tentaram me ceder a vez, enquanto eu recusava. Afinal, poderia ficar mais tempo falando com ela...
- Fiquei sabendo que está fazendo faculdade... Como estão os estudos?
- Puxa, faculdade é muito puxada... Além do mais, é difícil conciliar estudos com as Reuniões... Às vezes tenho que matar aulas muito importantes, mas eu já conversei bastante com os professores, e de uma forma ou de outra, eu estou conseguindo levar o curso adiante...
- Que bom. O importante é ter força de vontade...
O sorriso dela desapareceu por uns instantes, dando lugar a uma cara de preocupação...
- Hum, irmão?
- Sim?
- Bem, eu sempre fui desencorajada a fazer faculdade, para que os estudos não tirassem um tempo que eu poderia me dedicar mais a Jeová. Nestes últimos dias há uma pressão ainda maior sobre mim, já que com a proximidade do fim do mundo, não haveria motivos para que eu ingressasse em uma faculdade... Mas eu sempre quis ser odontóloga, e amo esta matéria... Você parece não se importar muito com isto...
Naquele instante me dei conta que nem todas as testemunhas de Jeová são fundamentalistas. Na verdade, as pessoas normais não são 100% fundamentalistas. Elas sempre criam regras rígidas naqueles pontos que não faz nenhuma importância para elas. Um pastor pode dizer que baterias são instrumentos musicais pagãos ao lembrar dos tambores tribais, e por isto proibi-los. Mas ele não usa a mesma rigidez ao usar o próprio calendário. E se depois de tudo, ainda houver aqueles que são 100% fundamentalistas, certamente poderão ser encontrados em suas casas em árvores, em algum canto escuro da floresta amazônica.
E ali, diante de mim, estava mais um exemplo de como estereótipos são injustos. Uma pessoa que gostava de estudar, e não via problemas entre os estudos e suas crenças. E era testemunha de Jeová. De fato, embora a sociedade se empenhe muito em impedir os jovens de estudar, eles não são 100% eficientes em seus sermões. E eu mesmo discordei sempre de todos eles. E o mais irônico de tudo isto é que quando esta moça se formar, todos os irmãos vão aproveitar-se dela. O problema agora era explicar por quê eu discordava de toda aquela argumentação, para uma testemunha de Jeová. E eu tinha que começar...
- Irmã, eu não vejo problema algum em se estudar em uma faculdade. Eu mesmo estudei muito na área de engenharia elétrica.
- E o quê pensa de estudar quando estamos se aproximando do fim?
- Bem, irmã, na minha opinião, não há diferença nenhuma.
- Não? – Perguntou, fazendo aquela carinha de quem não estava entendendo nada...
- Não. Veja, nós vivemos em um mundo onde não podemos prever o que poderá acontecer conosco. Eu estou nesta festa agora, mas amanhã posso nem estar vivo. No entanto, eu não me preocupo com isto o tempo inteiro. Nem ninguém. Todos nós trabalhamos, estudamos e amamos como se nossas vidas nunca fossem terminar. O fim do mundo está próximo? Ora, mas o fim da minha vida pode estar bem mais próximo que o fim do mundo, e isto nunca me impediu de viver a vida que eu sempre quis.
Ela ficou em silêncio por alguns instantes, refletindo sobre o que eu falei. Não pude deixar de reparar um leve sorriso se formando em seu rosto, com o tempo... Aquilo começava a fazer sentido para ela...
- Mas e o tempo que eu poderia estar dedicando a Jeová?
Dei um pequeno sorriso, e me aproximei de seu ouvido para cochichar a resposta:
- E quem disse que estudar não pode ser algo dedicado a Jeová?
Ela afastou o rosto, e me olhou atônita.
- Como assim?
- Ora, não é o próprio apóstolo Paulo quem diz “quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei todas as coisas para a glória de Deus”? Para mim, isto significa que estas coisas, quando feitas de modo digno, são consideradas obras sagradas. Coisas feitas de modo digno são dedicadas a Jeová, e Paulo usa este princípio aplicando-o a beber e comer. Podemos aplicar isto ao estudo também, não acha?
Ela ficou meio apreensiva, mas podia-se ver que aquele expressão de incômodo havia passado... Olhava para o chão, refletindo mais sobre o que eu tinha acabado de falar.
Eu ainda admirava sua expressão, quando um jovem se aproximou de nós. Rapidamente ele me cumprimentou, e se dirigiu depois à Priscila:
- Olá, irmã... Gostaria de falar com você em particular, poderia ser?
Rapidamente ela levantou seu rosto, e fitou ele nos olhos. Curiosamente vi seu rosto ficar pálido, depois corado... Alguma coisa estava acontecendo.
- Ah... Pu-puxa, o quê seria, irmão?
- Eh... bem, não poderia falar aqui... Você vem?
Ela olhou rapidamente para mim, então pensou um pouco antes de responder...
- Hum, pode ir na frente, já estou indo...
- Eu te espero, não tem problema.
- Pode me esperar ali então. Não vou demorar.
O rapaz então concordou, caminhando lentamente para o local que ela apontou.
- Quem é ele? – perguntei.
- Este é o irmão Aldo. É de outra congregação...
- Humm... O quê será que ele quer tanto falar com você?
Ela ficou um pouco pensativa, antes de me responder...
- Eu não sei... Mas talvez...
- Talvez...?
- Há algum tempo atrás estávamos para nos casar...
A revelação me deixou surpreso... Então toda aquela reação dela... Será que ela sentia alguma coisa por ele? No entanto, eu ainda via dúvida nela.
- E não deu certo?
- Não, ele me achou alegre demais... Parece que ele queria uma esposa mais “exemplar”...
- Puxa, que belo exemplo de pessoa...
- Irmão, obrigada por me dizer tudo que disse. Vou pensar bastante em tudo que me falou, mas vou tentar levar meu curso adiante...
- Então, vai falar com ele?
- Sim. Não sei o que ele quer... Até mais!
- Até mais!
Eu a observei caminhar até o tal do Aldo. Mal educado ele, será que ele não sabe perceber quando duas pessoas estão conversando? Tem que vir atrapalhar tudo? Ainda mais ex-pretendente! Deu o fora nela e agora se acha o bam-bam-bam... Lá no íntimo ele deve estar pensando como ele é fodão, fazendo o que bem entender com a pobre da Priscila... Mas ele vai se ver comigo...
De repente, senti alguém cutucando meu ombro.
- Marvin, você está parecendo nervoso... O quê aconteceu?
Me virei para ver o Estêvão, com uma cara de preocupação...
- Ah, nada... Não foi nada...
- Nada? Quem é aquele cara que chamou a Priscilinha para conversar?
Não consegui conter a expressão de estranheza ao ouvir aquilo...
- Priscilinha??? Desde quando você tem toda esta intimidade?
- Marvin, eu não tenho culpa se você é tão devagar... Agora, me diga quem é aquele ali.
- Aquele ali é o ex-noivo da Priscila.
A feição de Estêvão mudou rapidamente...
- Ex-noivo?
- Sim, e disse que queria falar algo com ela em particular...
Estêvão ficou furioso...
- Mas que cabra sem-vergonha... Ele está pensando o quê da vida? A fila anda!! Vou lá falar com o folgado agora...
- Ei, você ficou maluco?
- Não, mas aquele ali ficou...
Então ele saiu pisando duro, igual a um foguete. Foi explodir perto dos dois... Não dava para se ouvir o que eles estavam falando, mas o Estêvão gesticulava mais do que político em palanque, enquanto o jovem o respondia como podia. A pobre Priscila apenas ouvia, às vezes tentava interferir. De longe, eu observava a cena, enquanto outros irmãos se aproximavam tentando acalmá-lo. Foi quando alguém me chamou:
- Irmão, acho melhor você ir falar com o irmão Estêvão...
Eu não sou o tipo de pessoa que gosta de agir como babá dos outros. Mas aquilo poderia ficar sério. Decidi deixar a fila quase perto de minha vez, para ir até lá. Tudo que eu ouvi foi Estêvão acusando aquele cara de ter abandonado a Priscila, e agora tentando confundi-la com uma nova proposta de casamento. Cheguei perto dele, e falei no ouvido dele:
- Estêvão, você está ficando maluco? Os irmãos aqui estão estranhando tal atitude de um dos dois profetas do Apocalipse... Lembre-se, temos um papel a desempenhar, e não podemos ir contra as expectativas dos irmãos, ou levantaremos suspeitas...
Ele rapidamente se deu conta que as atitudes dele poderiam colocar em risco toda nossa operação. Então, retomando o controle de si, virou-se para a Priscila e continuou:
- Irmã, me desculpe pela cena... Poderia te convidar para uma conversa, longe deste rapaz?
Talvez a vontade de terminar toda aquela discussão a pressionou a aceitar o convite. Mais uma vez, esquecido em meu canto, fiquei observando ela se afastar, desta vez com Estêvão, como se fosse em câmera lenta.
Ver aquilo trouxe à tona várias lembranças do meu passado... Lembranças que me recordaram como eu não conseguia ficar feliz em uma festa... As pessoas felizes em suas rodas de amigos, enquanto eu tentava me distrair com qualquer coisa... Nunca entendi por quê às vezes eu era chamado para festas, embora não participasse de nenhuma roda de amigos. Talvez eu fosse apenas um número, que o dono da festa repetiria orgulhoso ao contar como fez uma festa onde compareceram todos da sala, algo parecido com as reuniões cristãs das Testemunhas de Jeová. Sempre que eles mencionavam o número de pessoas que compareceram à algum evento, eu tinha calafrios.
Aquela velha tristeza que eu conhecia tão bem aos poucos foi tomando conta de mim. Não era apenas o sentimento de ser deixado para trás que me deixava assim, era também o sentimento de que uma das pessoas que eu gostava estava se afastando... Como sempre aconteceu... Eu sempre observei minhas amadas de longe, e nunca fui capaz de lutar por elas assim... Agora teria que lutar contra dois.
Estava ali, no meio da multidão. Os casados dançavam alegres ao lado das solteironas viciadas no forró. De longe, crianças com camisas e sapatinhos de couro bem engraxados corriam em volta do pequeno parquinho que havia na chácara. Enquanto isto, os mais gulosos estavam pela terceira vez na fila, enchendo seus pratos com salgadinhos suficientes para toda a família, que aguardava em uma mesa ali perto. Estavam todos tão ocupados com suas respectivas diversões, que não se preocupavam em manter aparências (embora eu saiba que haverá comentários maldosos em todas as Congregações depois desta festa). Estavam felizes, talvez por quê a imagem da velha Torre de Vigia não estava ali, a vigiar. Por um momento, estavam livres para ser eles mesmos. Era um perfeito baile sem máscaras, e imediatamente me perguntei se eu também não estava ali, sem a minha. Não seria eu na realidade aquela figura triste e solitária perdida em uma multidão, minha verdadeira personalidade?
Todos procuram reconhecimento. E eu sempre procurei desesperadamente o meu, até certo ponto em minha vida. A verdade é que eu desisti de procurar, e passei a fazer de conta que estava satisfeito com a solidão... Ou eu estava de fato? Não sei. O que sei é que às vezes eu queria ser o centro das atenções... Outras vezes, desejava a solidão, e isto quase sempre acontecia quando mais pessoas me procuravam. Sou um eterno inconstante, como uma folha levada pelo vento... Como eu poderia mudar aquelas pessoas, se eu mesmo não conseguia definir minhas convicções? Mudar...

“Mas se você quer mudar o mundo, você deve começar com você mesmo.”

As palavras ecoaram em minha mente, e nada pude fazer a não ser concordar... Eu precisava mudar a mim mesmo... Pelo menos eu precisava deixar de me lamentar diante das dificuldades... Nós sempre nos lamentamos dos problemas, não nos jubilamos dos momentos de alegria. Isto deveria deixar claro que os problemas são temporários, que os problemas são os “intrusos” em nossas vidas. Porém, eu ainda precisava de algum tempo para me recompor...Assim, decidi ir para um local mais afastado, onde eu pudesse pensar mais sobre minha vida. Havia uma lagoa ali perto, bem iluminada. Além do som da festa e o barulho de pessoas conversando, somente os grilos faziam algum barulho digno de se reparar. Fui caminhando lentamente até lá, cumprimentando aqueles que puxavam conversa comigo. Foi chegando perto da lagoa, que havia mais uma pessoa por ali. Estava tão sozinha quanto eu, observando a lagoa, mergulhada em seus pensamentos...

segunda-feira, 8 de junho de 2009

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