sexta-feira, 10 de julho de 2009

Os 500 anos de Calvino


Há exatos 500 anos atrás, no dia 10 de julho de 1509, um menino chamado Jehan Cauvin nascia na pequena vila de Noyon, região da Picardia, cerca de 95 km ao norte de Paris. 

Com o nome devidamente aportuguesado para João Calvino, fica mais fácil saber de quem estamos falando, um dos dois maiores reformadores protestantes do século XVI. 

Apenas para fazer um paralelo com o outro reformador de destaque, em 1509, Martinho Lutero tinha 26 anos de idade, já havia sido ordenado sacerdote (em 1507), e lecionava Teologia na Universidade de Wittenberg desde 1508. 

Calvino tinha, portanto, 8 anos de idade quando Lutero afixou suas 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg, dando início ao período da História da humanidade (e da Igreja) que ficou conhecido como a Reforma Protestante. 

Numa brevíssima biografia, Calvino foi estudar na Universidade de Paris, no Collège Montaigu, em 1521 ou 1523 (há divergências sobre a data). 

Curiosamente, foi contemporâneo de dois expoentes católicos, Francisco Xavier e Inácio de Loyola, que fundariam a Companhia de Jesus (os jesuítas) em 1534, o que dá uma ideia da efervescência teológica daquele momento histórico. 

A idéia inicial era que também Calvino deveria estudar Teologia, já que possuía uma espécie de bolsa da Igreja Católica francesa destinada a este fim. 

Entretanto, seu pai muda de idéia em 1529, e ele vai estudar Direito em Orleans, onde provavelmente desenvolveu melhor sua veia argumentativa que se nota tão bem na sua obra. 

Além de uma forte formação humanista, Calvino também continuou estudando Teologia Não se sabe, com precisão, qual é a data da conversão de Calvino ao protestantismo, até porque ele nunca deu detalhes sobre este fato. 

Só se pode afirmar que foi entre 1532 e 1533, quando o movimento de luteranos e anabatistas já havia influenciado boa parte da Europa. 

Com a perseguição aos protestantes na França, Calvino se refugia na Suíça, inicialmente na Basiléia, onde publica – em 1536 - a primeira versão de sua obra máxima, Instituições da Religião Cristã ("As Institutas"), que é, originalmente, uma defesa da fé protestante, endereçada ao rei Francisco I, procurando convencê-lo das boas razões da Reforma. 

É em 1536 também que ele vai a Genebra, onde após idas e vindas, se estabelece definitivamente como o chefe da Reforma Protestante na cidade, na qual vem a falecer em 27 de maio de 1564. 

Segundo sua última vontade, seu corpo foi embalado num pano cru e depositado num caixão de pinho, como aqueles destinados aos pobres, para finalmente ser enterrado numa sepultura simples sem nenhuma inscrição ou monumento, para dar testemunho de que ele voltava ao pó.

Se as breves linhas acima não dão conta de traçar uma biografia de Calvino, muito mais espaço seria necessário neste blog para discutir a extensão de sua influência na trajetória da Igreja e do mundo nos séculos seguintes. 

Paixões – pró e contra, e muitas vezes extremadas – são despertadas quando se abordam a vida e os ensinos de Calvino. No campo teológico, ele é muitas vezes visto – equivocadamente – como uma espécie de "pai" da doutrina da predestinação, quando este tema é examinado de maneira discreta nas Institutas, que é um tratado de teologia muito bem escrito e fundamentado sobre as mais variadas doutrinas cristãs. 

Não se pode ignorar que a predestinação era um tema recorrente nas cartas de Paulo, e, antes de Calvino, já havia sido desenvolvido por Agostinho, Tomás de Aquino e Lutero.

Lamentavelmente, o preconceito faz com que muita gente despreze as Institutas e as demais obras de Calvino na base do "não li e não gostei". 

Outra crítica comum que lhe é dirigida, agora no campo materialista, é a de que a suposta ênfase calvinista na predestinação teria lançado as bases do capitalismo moderno, exercendo sobre ele uma enorme influência que, na verdade, não teve. 

Afinal, o sistema capitalista teve sua gênese no desmonte do feudalismo, no nascimento dos burgos e suas corporações de ofício, no colonialismo e nas novas rotas comerciais propiciadas pelas grandes navegações, todos esses fenômenos ocorridos nos séculos XIV e XV. 

A Reforma Protestante do século XVI se encaixa nesta agenda proto-capitalista como o xeque-mate no poder político da Igreja Católica, que até então mandava e desmandava na Europa. 

Como os séculos seguintes testemunharam, esse poder foi sendo perdido paulatinamente e, por mais que Max Weber tente, não se pode fazer uma associação direta e imediata entre a doutrina da predestinação com a riqueza da elite dominante e o destino proletário das classes trabalhadoras, como se Calvino tivesse tentado reproduzir na Europa o sistema hindu de castas, tudo com o objetivo de inaugurar um novo sistema, que, por sinal, só veio a tomar as feições modernas de capitalismo após as Revoluções Industrial (no campo econômico) e Francesa (no campo político), mais de 3 séculos depois.

Como indica o texto anterior, do historiador Justo L. González, muito do que se atribui a Calvino, ele efetivamente não fez, disse ou escreveu. Nunca se viu como o dono da verdade ou o fundador de uma nova doutrina ou religião, mas como um humilde servo de Deus num período especialmente conturbado para a Sua Igreja. 

É muito cômodo (e anacrônico) julgar um homem do século XVI com os olhos do século XXI, mas Calvino, além de ter sido um produto do meio em que viveu, foi um homem à altura do seu tempo, desafiando o establishment e lutando para construir um mundo em que a liberdade de culto fosse um direito reconhecido e protegido, isso num tempo em que milhares morreram por defender esta garantia, hoje tão preciosa à humanidade.

Obviamente, teve que encastelar-se em Genebra para poupar a vida e as idéias, e não viveu para ver isso concretizado, nem a mudança se operou de forma instantânea, tanto que, 8 anos após sua morte, a França sofreu a infame Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572), em que dezenas de milhares de protestantes foram massacrados a mando da realeza católica. 

Nos séculos seguintes, muito sangue fratricida ainda correria pelas ruas e pelos rios europeus até que desfrutássemos da atual liberdade religiosa (ou ateísta). 

Calvino pode até não ter sido um fator decisivo neste processo, mas foi um dos muitos homens e mulheres que dedicaram a vida a vê-lo realizado, ainda que pelos olhos do século XVI. 

Aquele foi um período em que era preciso tomar posição, geralmente desconfortável, e fazer escolhas terríveis com consequências potencialmente drásticas ou letais. 

Qualquer relação que se possa fazer com a intervenção divina na história da humanidade não é mera coincidência. 

Neste aspecto, Calvino preferiu não se omitir e foi o homem certo no lugar certo e na hora certa. Motivos não faltam, portanto, para celebrar o seu 5º centenário.


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