quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Os numerólogos "evangélicos"


A Igreja evangélica brasileira tem visto, na ultima década em especial, a proliferação de uma abordagem numerológica da Bíblia, como se alguns “pastores” fossem verdadeiros lançadores de sortes com base em interpretações esdrúxulas de alguns versículos cuidadosamente pinçados. Chama a atenção, por exemplo, que no triste episódio da “unção financeira de 900 reais”, o Morris Cerullo tenha falado ao Silas Malafaia que “9” é o número de “estar completo”, e este tenha concordado como se fosse um tremendo segredo numerológico conhecido apenas pelos iniciados. Este fato aparentemente isolado ilustra bem o que tem acontecido no meio evangélico: a invasão do gnosticismo em suas versões mais antigas. A palavra grega gnosis (gnose, daí gnosticismo) significa exatamente isto: “conhecer”, e neste sistema, o conhecimento se limita a um círculo restrito de iluminados que, por detê-lo e não difundi-lo (senão em doses homeopáticas de mistério), impõem aos seus seguidores uma relação de autoridade. O gestual de Malafaia assentindo com a cabeça - e com ar de superioridade - a uma bobagem dita por Cerullo mostra a que ponto chegamos, já que se trata de um líder evangélico reconhecido como tal por parcela expressiva da população brasileira, que – culturalmente – não está habituada a questionar o “ensinos”, as “unções” e as ordens que lhe são enfiados goela abaixo. Trata-se, portanto, de uma relação de poder e dominação, logo, ideológica (ainda que travestida de “teologia”).

O primeiro grande problema que a Igreja primitiva enfrentou foi justamente o gnosticismo. Nesta época, o Império Romano era, de certa forma, sucessor do Império Helênico de Alexandre, o Grande, e todos os distintos povos conquistados estavam misturados, numa efervescência cultural e religiosa poucas vezes registradas na história da humanidade, se é que algum dia houve algo parecido. O cristianismo se espalhava pelas rotas romanas a todos os cantos do Império, e havia algo de novo na proposta cristã, ainda que os pagãos não conseguissem entender bem a altura, a extensão e a profundidade do evangelho. Talvez por isso mesmo misturassem a mensagem cristã com uma série de influências das religiões de mistério da época, formando muitos sistemas de crenças que ficaram conhecidos como “gnósticos”, mas que basicamente tinham em comum complexos cálculos numerológicos dominados apenas por um grupo restrito de iniciados. Para conhecer - em detalhe - vários desses sistemas gnósticos, recomenda-se a leitura do livro "Contra as Heresias", de Irineu de Lião. Já o historiador cristão Justo L. González tenta explicar o aparentemente inexplicável da seguinte maneira:

Apesar de haver elementos especulativos muito importantes no gnosticismo, o fato desse ensino ser usualmente apresentado como um conjunto de sistemas de especulações numerológicas tornou impossível entender como tal doutrina pode ter sido um rival tão forte da igreja. O fato do gnosticismo ter se tornado uma alternativa atraente em relação ao Cristianismo ortodoxo deve-se, sobretudo, a seu interesse soteriológico. A fim de entender este apelo, deve-se interpretar o gnosticismo, acima de tudo, como um modo de salvação. O cosmopolitanismo que acompanhou as conquistas de Alexandre tinha sua contraparte no individualismo das pessoas. Acreditava-se que as antigas religiões nacionais não eram mais capazes de satisfazer às necessidades do indivíduo. Por esta razão, os séculos nos quais o Cristianismo começou a conquistar seu espaço no mundo foram caracterizados por uma procura pela salvação individual; consequentemente, nesse tempo, houve um crescimento daquelas religiões que proclamavam oferecê-la – e além do Cristianismo, assim faziam as religiões de mistério e o gnosticismo.
..........
De qualquer forma, a doutrina da salvação deve estar baseada em uma compreensão de nosso lugar no universo, e esta é a função das complicadas construções especulativas dentro dos vários sistemas gnósticos. Se o espírito está aprisionado na matéria, deve haver uma razão para esta condição; e esta razão os gnósticos tentam oferecer por meio de suas especulações. Há duas características principais nestas especulações: seu dualismo derivado e sua numerologia. O dualismo do gnosticismo, que por muitos eruditos têm sido enfatizado como uma de suas principais características, não é um dualismo primário ou inicial; ao contrário, resulta de um monismo inicial. As especulações gnósticas são traçadas a partir de um único princípio eterno, do qual outros princípios ou aeons são produzidos em um processo declinante, até – geralmente é dito, devido a um erro em um dos aeons anteriores – o mundo material ser produzido. Assim aparece o dualismo derivado entre a matéria e o espírito, ou entre o celestial e o terreno. Dentro do processo de produção dos vários níveis de aeons, a numerologia – outra característica muito comum na especulação helenística – representa um papel importante, pois os aeons geralmente são produzidos seguindo certos modelos numéricos. A cosmologia gnóstica nasce de tal combinação entre o dualismo derivado e a especulação numerológica, e é caracterizada por uma complexa série de aeons que ficam entre o absoluto e o mundo material. Estes seres são frequentemente vistos como esferas que o espírito deve atravessar em seu retorno à eternidade.

(GONZÁLEZ, Justo L., Uma História do Pensamento Cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. vol. 1, pp. 125-127 – veja o excerto completo no site e-cristianismo)

Justo González chama a atenção para outro aspecto da efervescência religiosa dos dois primeiros séculos cristãos - o individualismo -, que não por acaso, é uma das características marcantes do atual estágio da igreja evangélica no Brasil, em pleno século XXI. A teologia da prosperidade pregada aos 4 ventos (sem qualquer simbologia no “4”), as unções financeiras de 900 reais, as “campanhas” que geralmente envolvem números e símbolos esotéricos, a necessidade mórbida de se estabelecer alvos financeiros expressos em cifras milionárias, enfim, tudo aponta para uma invasão gnóstica entre os evangélicos no Brasil. Ainda há tempo de reverter este quadro, mas infelizmente muita gente já se perdeu, e combater o “gnosticismo evangélico” certamente não vai trazer “popularidade” a quem levantar sua voz contra esta heresia revisitada, mas se Cristo não for exaltado nas nossas vidas, de que vai adiantar a fama, o dinheiro e os números? Nada!

3 comentários:

  1. Prezado irmão Hélio,
    muito bem abordado o assunto. Agora o Cerullo apareceu com a unção do 7 nos EUA. A jogatina está aberta a quem quiser. Realmente é um agnosticismo travestido de espiritualidade cristã. Permita-me discordar em um ponto. Quando você fala que ainda há tempo de reverter a situação. Acredito que uma boa parte da ala que se diz evangélica não tenha mais conserto. É a banda podre do processo. Isso que o irmão expôs já virou tendência e tendência não se reverte no curto prazo e dependendo isso vai longe demais. Mas creio nos 7000 que não dobraram seus joelhos a Baal.
    Parabéns pela lucidez e senso de relevância exarados no texto.
    Um abraço
    Em Cristo

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  2. Obrigado pelo comentário, Pr. Luiz Fernando,

    A sua discordância está plenamente aceita, o irmão tem razão ao dizer que a tendência já instalada é difícil de reverter, mas vamos ficar com os 7000 que - GRAÇAS A DEUS! - não dobraram seus joelhos a Baal.

    Abraço!

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  3. Realmente é lamentável episódios como esse (O de Silas Malafaia). A fim de acrescentar informações sobre o tema "gnosticismo", cito abaixo Elaine Pagels:

    “Clemente de Alexandria [...] relata que havia uma ‘gnosis monádica’; e as descobertas de Nag Hammadi também revelam que o gnosticismo valentiano – a forma mais influente e sofisticada de ensinamento gnóstico e a que mais ameaçava a igreja – diferia bastante do dualismo”[1].

    É interessante que a maioria dos livros destaque o dualismo como característica principal do gnosticismo. Mas não é bem isso o que mostra Elaine Pagels.

    Muito legal o seu Blog. Um abraço!

    Nota:
    [1] PAGELS, Elaine. Os evangelhos gnósticos. Tradução de Maria Motta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p.33.

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