sábado, 27 de março de 2010

Um corpo que cai

Na última madrugada, o resultado do júri do casal Nardoni foi recebido pelos presentes ao Fórum Regional de Santana como a final de um campeonato, com intensa vibração e espoucar de fogos. Além da satisfação popular com a justiça sendo servida, o que não deixa de ser algo bom, o fato revela este fascínio atávico que a morte exerce sobre o ser humano, a ponto de ser celebrada morbidamente, ainda que sob a roupagem de comemoração do justo. No fundo, a miséria humana - que nos inocula a todos - fica estampada em nossas faces jubilosas com o poder do Estado que assume e sublima nosso desejo coletivo de vingança. Quando o criminoso é condenado, não é só o mal que injustamente perpetrou que lhe está sendo justamente retribuído, mas também nossa sede de sangue que está sendo ilusoriamente saciada, já que há uma corrente desigual de rubros líquidos vitais rotineiramente derramados e ressarcidos desde que o mundo é mundo. Não por acaso, o relato bíblico do primeiro assassinato, de Abel por Caim, este último revela uma total indiferença pelo outro, enquanto a terra clama pelo sangue do irmão. Paradoxalmente, Deus não quer que o sangue de Caim substitua o de sua vítima (Gênesis 4:15). Mesmo quem não crê na inspiração e literalidade da Bíblia, e vê aí um mito, percebe que estamos diante de um paradigma, um arquétipo de todos os assassinatos da História. O sangue injustamente derramado nos une, nos nivela e nos transcende. Seis mil anos de inteligência humana no planeta - historicamente registrada - não foram suficientes para preparar-nos para a morte vã e estúpida do ente querido. A moderna espetacularização midiática do crime faz com que este mesmo ente, querido por poucos, seja amado e perdido por muitos, pois a indefesa Isabella se tornou imaginariamente a nossa filha, neta, irmã, a ovelhinha angelical que o lobo – travestido de ovelha maternal – levou. Quando o assassino é punido, celebramos tanto a pena aplicada como – inconfessavelmente – o sangue que foi, é e continuará sendo derramado nesta morta roda viva sem fim. A satisfação da justiça é passageira, dura até o próximo crime que tenha tanta repercussão popular.

Como cristãos, sabemos que o ser humano jamais se satisfará com o círculo vicioso da morte-punição-morte, ainda que equivocadamente pense – por alguns segundos – que uma sentença possa resolver o problema. A terra seguirá clamando pelo sangue inocente derramado. Sabemos que, por nossa maldade intrínseca, somos todos merecedores de uma sentença de morte, mas a condenação alheia nos aplaca momentaneamente o desejo de olhar para o nosso interior e ver que a nossa salvação depende de uma ajuda externa infinitamente superior a qualquer esforço humano de justiça. Só quando nos damos conta desta verdade particular e universalmente incontornável que o puro sangue do Cordeiro de Deus entra em nossas vidas e rompe – para sempre – os laços mórbidos que nos prendem a este mundo injusto, capacitando-nos a celebrar continuamente a vida, apesar de tudo e de todos, aqui e no porvir.

Mesmo que os réus, Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá, saibam no seu íntimo que são culpados, para seguir vivendo precisam – pelo menos – tentar apagar de suas memórias o inominável e acreditar que não foram eles que cometeram o ato cruel e absurdo de que são acusados, necessidade mitômana que também acossa seus pais, que não podem continuar suas vidas com a certeza de que geraram monstros. Já nós, que formamos a plateia ocasional do grotesco espetáculo, não gostamos de ser lembrados de que somos seres caídos, Nardonis e Jatobás de um paraíso momentaneamente inatingível, e a desgraça na casa ao lado nos dá um conforto efêmero de que não somos tão maus assim. Soltamos rojões, mas mentimos todos, enfim...

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