domingo, 4 de dezembro de 2011

Respeito à Bíblia começa com quem a prega

Algumas lideranças evangélicas estão indignadas com o episódio ocorrido alguns dias atrás no (chatíssimo) Programa do Jô, da Rede Globo, em que o apresentador, ao entrevistar os músicos Moraes Moreira e Tom Zé, este último disse que utilizava folhas de Bíblia para enrolar seus "baseados" (de maconha), quando Jô, "sem querer interromper, mas já interrompendo", completou dizendo que "a Bíblia tem mil e uma utilidades". Foi o suficiente para levantar uma onda de indignação entre algumas celebridades gospel, como Renê Terra Nova e Marco Feliciano. O primeiro, autointitulado "paipóstolo" (ou coisa que o valha), gravou um vídeo em que exige retratação do programa (pouparemos o leitor de ver o vídeo dessa figura). Já o deputado federal Feliciano subiu à tribuna da Câmara para reclamar providências da Globo quanto ao ocorrido. Primeiramente, há que registrar o - no mínimo - mau gosto da observação das celebridades televisivas, mas até aí não há nenhuma novidade. Afinal, vivemos num mundo que "jaz no maligno" (1ª João 5:19). Não só é esperado que os ímpios não creiam na Bíblia, como também a desprezem e a insultem. Como aprendi com um antigo pastor, só o crente tem consciência do pecado. Além disso, vivemos num país laico e todas as pessoas, indistintamente, têm o direito de manifestar a sua opinião sobre tudo, respeitando alguns poucos limites, é verdade, mas nem podemos dizer que eles foram ultrapassados. A Bíblia não é propriedade de ninguém. Mesmo a Igreja Católica, que alega ser a sua única intérprete autorizada, não pode dizer que é dona da Bíblia. Os próprios muçulmanos têm a Bíblia como um livro sagrado, ainda que em menor degrau que o do Alcorão. Aliás, poucas vezes se agradece a Roma por ter preservado os manuscritos mais antigos ainda existentes da Bíblia, hoje também em alguns museus da Europa. Mesmo as seitas heréticas que dizem ter uma interpretação única e exclusiva da Bíblia, se esquecem facilmente de que a maior parte dos manuscritos que distorcem foi preservada pelo Vaticano.

A Bíblia é, portanto, um patrimônio da humanidade, quer daqueles que a consideram divina, quer os outros que a repudiam ou reconhecem nela apenas um valor histórico-cultural. A atitude de cada ser humano em relação à Bíblia é uma prerrogativa que lhe cabe exclusiva e individualmente, para o bem ou para o mal (ou ainda para a turma do "tanto faz"). Afinal, cremos (ou deveríamos crer) que "cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus" (Romanos 14:12). Chama a atenção, portanto, que dois expoentes do mundinho evangélico brasileiro fiquem tão indignados com o fato ridículo ocorrido num programa de TV. Primeiro, porque ninguém lhes deu nenhuma procuração para falarem em nome dos evangélicos brasileiros, ainda que a sua megalomania os faça se iludirem com essa suposta representação. Segundo, porque todo aquele que quer pedir aos outros para respeitarem a Bíblia, deve respeitá-la primeiro, e os dois têm uma interpretação muito particular da Escritura, como já foi exposto aqui no blog. Terceiro, antes de acusar alguém de profanar um símbolo religioso, é melhor não ser profano, como vender consórcio usando o nome de Jesus ou distorcer a Bíblia para fazer campanha política. Quarto, não é função do cristão ficar patrulhando o que os outros dizem ou pensam, mas ele deve pregar o evangelho a toda criatura sem tolher a liberdade de expressão de quem quer que seja. Quinto - e sem terminar por aqui -, essa pregação do evangelho deve ser feita não só com palavras, mas sobretudo pelo exemplo de uma vida cristã digna, humilde e correta.

Desconfio que o mundo não-cristão perceba a hipocrisia que existe nos discursos de tantos líderes supostamente cristãos e - justamente por isso - ridicularize cada vez mais os símbolos sagrados do cristianismo. Ao fazê-lo, estão - na verdade - expondo os hipócritas que manipulam a Bíblia a seu bel prazer. Quanto ao Jô e seus convidados, eles têm todo o direito de falar as asneiras que quiserem, e cabe ao telespectador simplesmente desligar a TV ou mudar de programa. Devem se submeter ao crivo da audiência, já que o da própria consciência não os socorre. De qualquer maneira, por via transversa, Jô Soares acertou num determinado aspecto ao dizer que "a Bíblia tem mil e uma utilidades", e talvez seja esse exato aspecto que incomoda Renê e Marco: o utilitarismo. Nas suas denominações e pregações, assim como em boa parte do evangelicalismo brasileiro, vigora a corrente ideológica do utilitarismo. A Bíblia e sua correta interpretação, bem como o respeito que lhe é devido, não têm mais nenhuma importância para esse grupo, já que o que vale pra eles é que "os fins justificam os meios". A sua mensagem é eminentemente utilitária: "não importa o que a Bíblia diz, mas como vamos atingir certos fins materialistas e esotéricos a que nos propusemos, pinçando um versículo aqui e ali", ou seja, "como é que a Bíblia pode nos ser útil?". No popular, como já falamos aqui a respeito de "Uri Geller e o evangelho torto", a coisa funciona na base do "funciona!". Se a "fé" não produzir resultados concretos, mensuráveis, ela não é mais fé para essas pessoas. Não "funciona". De qualquer maneira, a indignação ocasional dos "expoentes da fé" também não convence ninguém, salvo os tradicionais puxa-sacos de plantão.




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