sexta-feira, 26 de outubro de 2012

No jardim das feras

A vastíssima literatura histórica disponível sobre o nazismo se caracteriza, principalmente, pela biografia dos principais líderes (sendo Hitler o personagem mais retratado) e pela narrativa dos incidentes diplomáticos e das estratégias e batalhas militares.

É relevante, portanto, quando aparece uma abordagem um tanto quanto diferente desses batidos fatos históricos, com pontos de vista aparentemente periféricos, mas que não deixam de penetrar no âmago das trevas que cobriram a humanidade no começo do século XX.

É este o caso do livro “No Jardim das Feras” (“In the Garden of Beasts”), de Erik Larson, lançado nos Estados Unidos em 2011 e que teve – felizmente – rápidas tradução (por Berilo Vargas) e edição (pela Ed. Intrínseca) no Brasil em 2012.

O subtítulo “Intriga e Sedução na Alemanha de Hitler” (em inglês é “Love, terror, and na American family in Hitler’s Berlin”) sugere, de imediato, que se trata de uma narrativa que parte do indivíduo em direção à conjuntura que o cerca, e é exatamente isso o que Larson entrega ao leitor.

Tomando como personagens principais o embaixador americano em Berlim, William E. Dodd, e sua família (em especial a filha Martha), “No Jardim das Feras” traz uma perspectiva nauseante da “enfermidade” que começa a destruir uma sociedade então tida como moderna como a alemã, levando às mais extremas raias da loucura boa parte do que se entendia como “mundo” e “civilização” à época.

William E. Dodd era um pacato professor de origem sulista, que chegou ao cargo de diretor do Departamento de História da Universidade de Chicago, e que fizera seu Doutorado na Alemanha de 1897 a 1899, período em que desenvolveu enorme admiração pelo país europeu.

Em janeiro de 1933, Hitler chega finalmente ao poder com o cargo de chanceler, e, 5 meses depois, diante da recusa de outros nomes reconhecidamente mais preparados, o presidente americano Franklin D. Roosevelt convida Dodd para o posto até então vago de embaixador na Alemanha.

Os Dodd ainda sorrindo em 1933
Desta forma, a família Dodd desembarca em Hamburgo em 13 de julho de 1933, o pai William, a mãe Mattie e os filhos William Jr. (28 anos de idade) e Martha (24). Suas vidas nunca mais seriam as mesmas e pelos seus olhos o leitor começa a ver uma descida ao inferno sem fim.

O novo embaixador não era, digamos, “talhado” para as funções, seja do ponto de vista do temperamento que se esperava de um diplomata, seja quanto às suas posses, já que se esperava que quem ocupasse o cargo desenvolvesse uma vida social nababesca no novo país, o que não foi o caso de Dodd.

Intrigas com o corpo diplomático, portanto, não lhe faltaram. As “feras” do título do livro não eram só os nazistas, mas os próprios “colegas” americanos. Aos poucos Dodd vai se desgastando com os jogos de bastidores que se travavam à sua volta, interna e externamente, até que é “convidado” a voltar para casa em novembro de 1937, menos de 2 anos antes do estouro da Segunda Guerra Mundial, conflito este que ele já vaticinava (e reiteradamente alertava) enquanto estava em Berlim.

Nesses pouco mais de 4 anos à frente da embaixada americana em Berlim, a família Dodd testemunha a rápida e irreversível degeneração da alma alemã sob a batuta de Hitler. Pelos olhos deles, o leitor se sente parte de uma Berlim que, mesmo depois de atingir o fundo do poço da insanidade, consegue enlouquecer um pouco mais a cada dia que passa.

Pelos Dodd passam não só a nata do (então nascente) totalitarismo nazista, como Hitler, Göring e Himmler, mas toda uma casta de líderes, oficiais e suboficiais políticos, sociais, jornalistas, militares e diplomáticos que – mesmo que previssem o fim do mundo - foram incapazes de evitar a barbárie que se seguiu.

Lendo o livro se sabe, por exemplo, que Putzi Hanfstaengl, um dos próceres nazistas, achava que Hitler se “parecia com um cabeleireiro de subúrbio em dia de folga” (pág. 161).

É nessa rede de intrigas paralelas e imbricadas que o leitor acompanha um relato interessantíssimo de como uma sociedade se enferma, e leva algum tempo para que alguns (e somente alguns) se deem conta disso, mas aí já é tarde demais.

Os detalhes pitorescos e rocambolescos do livro ficam por conta de Martha Dodd, a filha esfuziante do embaixador que leva uma vida, digamos, livre demais (para não dizer “libertina”) para uma jovem dos anos 1930, ainda mais na posição que ela ocupava.

Pela cama de Martha passaram vários oficiais nazistas e diplomatas de outros países, além do futuro Prêmio Nobel de Medicina (1969) Max Delbrück. Sua verdadeira paixão parece que foi o russo Boris Winogradov, agente da embaixada soviética que pouco a pouco a enreda num roteiro (real) de filme de 007, até arregimentá-la como espiã, o que lhes trará (a ambos) sérias consequências para o resto da vida.

Um dos amantes de Martha, o chefe da Gestapo Rudolf Diels, a certa altura da narrativa (pág. 255), dá um depoimento muito interessante sobre a natureza do ser humano (e do mal em estado bruto):
Numa conversa com funcionários da embaixada britânica, mais ou menos nessa época, citada num memorando que depois foi enviado ao serviço exterior em Londres, Diels recitou um monólogo sobre seu próprio desconforto moral: “A imposição do castigo físico não é tarefa para qualquer um, e naturalmente ficávamos muito felizes de poder recrutar homens que estivessem preparados para não demonstrar escrúpulos em sua função. Infelizmente não sabíamos nada do aspecto freudiano do assunto, e só depois de alguns casos de chicotadas desnecessárias e de crueldades sem sentido compreendi que minha organização atraía, havia algum tempo, todos os sádicos da Alemanha e da Áustria sem o meu conhecimento. Atraía também sádicos inconscientes, ou seja, homens que não sabiam de suas tendências sádicas até participarem de um açoitamento. E, finalmente, ela na verdade criou sádicos. Pois parece que o castigo corporal acaba despertando tendências sádicas em homens e mulheres aparentemente normais. Freud teria explicado”.
O romance proibido de Martha e Boris dá um clima de suspense todo especial ao “Jardim das Feras”, e o leitor chega a torcer para que o estranho love affair do espião russo com a ninfomaníaca americana de alguma forma chegue a um final feliz.

Entretanto, como quase tudo que ocorreu àquela época, não há finais felizes para os personagens reais da trama, e talvez aí resida o maior mérito do livro, o de mostrar como seres humanos tidos como “normais” numa sociedade “convencional” podem estar muito mais perto do abismo do que eles jamais imaginaram.

Erik Larson escreveu um ótimo livro, fácil e gostoso de ler (apesar do tema mórbido), e felizmente os seus personagens deixaram farta documentação que o autor, mediante exaustiva pesquisa, conseguiu colecionar para tornar crível um roteiro que muitos poderiam pensar que se trata da mais alucinada ficção. Não por acaso já existe uma pré-produção do filme baseado no livro com Tom Hanks no papel de Dodd.

William E. Dodd foi um homem simples do Sul dos Estados Unidos que, por essas incríveis coincidências do destino, serviu como embaixador de seu país na Alemanha pouco antes da Segunda Guerra começar. Até certo ponto, foi um visionário que previu a guerra, mas seus alertas foram ignorados por seus superiores. Deixou, entretanto, uma observação da realidade alemã daqueles tempos que constata até que ponto a humanidade pode se degenerar (págs. 336-337): Na anotação que fez em seu diário no domingo, 5 de agosto de 1934, Dodd comentou um traço do povo alemão que ele observara em seus tempos de Leipzig, e que persistia mesmo sob Hitler: o amor aos animais, especialmente cavalos e cães.

“Numa época em que quase todos os alemães têm medo de trocar uma palavra com alguém que não seja um amigo íntimo, cavalos e cães são tão felizes que é como se quisessem falar”, escreveu ele. “Uma mulher capaz de denunciar um vizinho por deslealdade, e por a vida dele em risco, ou mesmo causar-lhe a morte, leva seu grande cão de aparência amistosa para um passeio no Tiergarten. Conversa com ele, afaga-o, sentada num banco, e ele atende às necessidades da natureza”.

Dodd tinha percebido que na Alemanha ninguém tratava mal um cachorro, e, por isso, os bichos não tinham medo dos homens, e eram sempre roliços e evidentemente bem cuidados. “Só os cavalos parecem igualmente felizes, nunca as crianças ou os jovens”, escreveu. “Quando vou para o trabalho, tenho o hábito de parar para dizer qualquer coisa a um par de lindos cavalos que esperam sua carroça ser descarregada. São tão limpos, tão gordos e tão felizes que parecem prestes a falar”. Era o que chamava de “felicidade equina’, fenômeno que tinha notado também em Nuremberg e Dresden. Sabia que essa felicidade era em parte fomentada pela lei alemã, que proibia a crueldade contra animais e punia os infratores com prisão – e era nisso que Dodd via uma profunda ironia. “Numa época em que centenas de homens são mortos sem julgamento ou nenhuma evidência de culpa, e em que a população literalmente treme de medo, os animais têm direitos garantidos que homens e mulheres nem sonham em ter”.

E acrescentava: “Pode-se facilmente desejar ser um cavalo!”.
Eles gostavam de animais...
Mal sabia Dodd que um ano depois, a milhares de quilômetros dali, no Brasil, o grande advogado (Heráclito Fontoura) Sobral Pinto invocaria a Lei de Proteção aos Animais brasileira para defender o líder comunista Luís Carlos Prestes e o militante alemão Arthur Ernest Ewert (conhecido pela alcunha de Harry Berger), então presos e torturados pela ditadura de Getúlio Vargas em repressão à Intentona Comunista de 1935.

O alemão Ewert foi tão barbaramente torturado por Filinto Müller que enlouqueceu, e mesmo assim ficou preso no Brasil até 1947, quando foi libertado e deportado para Alemanha, onde terminou seus dias num hospício em 1959. Curiosamente, Müller visitaria a Alemanha em 1937, onde fez questão de conhecer o facínora Heinrich Himmler, de quem era fã.

O fato é que, muitas vezes na história da humanidade, lá e cá, aqui e acolá, só os cães e os cavalos é que são felizes...



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