sábado, 30 de março de 2013

Que fim levou Barrabás?


Esta é uma pergunta que certamente nunca será respondida, já que os rastros de Barrabás se perderam na história depois da crucificação de Jesus, mas não deixa de ser interessante a crítica sobre o filme homônimo que Marcello Scarrone fez para a Revista de História.

É uma daquelas resenhas que conseguem ser muito melhores que o próprio filme analisado:

O homem que não podia morrer

Os últimos dias da vida de Jesus foram representados inúmeras vezes no cinema. O drama épico ‘Barrabás’, clássico dos anos 1960, conta a história do sujeito que foi salvo, literalmente, pela morte de Cristo

Muitas vezes e com abordagens diferentes o cinema se aproximou dos eventos históricos ligados às raízes do cristianismo. Tema presente de forma preponderante na arte figurativa sobretudo do mundo ocidental, da Idade Media à Renascença, do barroco aos estilos posteriores, tanto na representação do nascimento de Cristo quanto na transposição sobre tela, parede ou tapeçaria de milagres ou pregações dele, a fé cristã e os fatos que estão em sua origem encontraram tratamentos pictóricos dos mais variados. Como dito, também a sétima arte se interessou do objeto, e como aconteceu pelas outras formas artísticas, os resultados foram dos mais diversificados. Mas uma coisa salta aos olhos: o peso decididamente superior que em todas as releituras artísticas têm os últimos dias da vida de Jesus, isto é, os eventos ligados à sua paixão, sua morte de cruz e sua misteriosa ressurreição.

De Nicholas Rey (“O Rei dos Reis”, 1961) a Scorsese (“A Última Tentação de Cristo”, 1988), de Zeffirelli (“Jesus de Nazaré”, 1977) a Denys Arcand (“Jesus de Montreal”, 1989), passando por musicais como “Jesus Cristo Superstar” (1974) e até chegar a Mel Gibson (“A Paixão de Cristo”, 2004), a representação cinematográfica daqueles momentos finais desafiou vários diretores. Sem falar de outras produções que tocaram no tema da Páscoa cristã de forma tangencial, como o interessantíssimo “A Investigação” (1986), de Damiano Damiani, com o “tarantiniano” Harvey Keitel no papel de um Pilátos empenhado na tentativa de camuflar os indícios da ressurreição, ou o próprio “Ben-Hur” (1959), drama épico de Wyler. Nesta linha se coloca também “Barrabás”, filme de Richard Fleischer de 1961.

Marcado pela vida inteira por aquilo que lhe ocorrera, isto é, sua misteriosa e incompreensível libertação pela autoridade romana em ocasião da condenação à morte de Jesus Nazareno, o ladrão e assassino Barrabás vive o resto de sua existência carregando um estigma. Não mais o estigma de seus crimes que o levaram à captura e prisão, e sim o de ser um “agraciado”. O primeiro homem a ser salvo, literalmente, pela morte de Cristo. O primeiro homem para o qual a perspectiva da própria morte é afastada graças à morte do outro. Barrabás, por causa disso, acaba sendo um deslocado, tendo sua identidade alterada. Entre seus antigos companheiros de crimes e rapinas, não encontra mais acolhida. Os seguidores de Jesus o veem como o que causou, mesmo que de forma indireta, a morte do Mestre. Não há mais lugar para ele no mundo que conhecia.

Mesmo assim, sua vida vai seguindo, e, entre um evento e outro, acaba percorrendo, quase sem querer, as pegadas daquele que o libertou. Em várias ocasiões se depara com pessoas que encontraram e conheceram aquele homem, aquele estranho profeta: do apóstolo Pedro a Lázaro, o homem que Jesus ressuscitara dos mortos; de sua antiga companheira, agora convertida e até apedrejada por isso, a um prisioneiro e condenado como ele que carrega no pescoço uma cruz. Sim, porque Barrabás ainda é homem de impulsos repentinos, e por defender violentamente sua companheira, é novamente preso: e mais uma vez “agraciado”, pois ao invés da sentença capital, lhe cabe uma condenação aos trabalhos nas minas da Sicília. Aqui, o encontro com outro condenado, que de Cristo é seguidor, o inquieta. Amarrados à mesma corrente, Barrabás e o companheiro são os únicos sobreviventes de um terremoto: salvo mais uma vez. E, enfim, a transferência dos dois para Roma, a capital do Império, para servir como gladiadores na arena. Aqui, tempos depois, a luta com o líder do grupo, até então invicto, e sua improvável vitória que leva o imperador Nero a libertá-lo. A morte parece fugir diante dele: não há evento natural ou justiça humana que parece capaz de elimina-lo da existência.

Contínuos episódios de graça, de salvação. Mas Barrabás não é homem de fé, não entende o que está passando na trama de sua vida. Nem o martírio do amigo o faz confessar a fé cristã: diante do governador romano, declara não ter nenhum tipo de crença. Desnorteado, incrédulo, é o símbolo do homem que não tem um deus, mas que o busca. Está sozinho perante e vida e a morte, e também sua passagem pelas catacumbas, local de sepultura cristão e de memória, se torna quase um pesadelo, do qual quer escapar. Sua derradeira adesão à ação dos discípulos de Cristo, acusados pela voz pública de estarem colocando fogo na cidade, soa como uma atrapalhada e confusa tentativa de entender, de fazer algo para responder ao mistério daquele homem que ele não conheceu mas que está tão presente na sua vida. De uma vida sem deus, como era a dele antes, para uma vida ainda sem deus, mas que talvez o busque.

O final fica aberto a várias interpretações. Mas o filme se coloca como a parábola do ser humano diante do infinito, do divino, do outro diante de si. Crer, se abandonar, aceitar e seguir, ou lutar se rebelando e negando. Ou ainda buscar, como Barrabás, sem, todavia, chegar ao fim, se abrir tentando entender, mesmo chegando somente no limiar da fé. Um homem que admite seu agnosticismo, que gostaria talvez de crer, mas que fica nisso. Ou não?

O filme, realizado nos estúdios romanos de Cinecittá, conta também com a intensa interpretação de Anthony Quinn, rosto mexicano emprestado a um judeu rebelde (no filme de Zeffirelli, anos depois, ele mesmo interpretará o sumo sacerdote Caifás). A produção é uma adaptação para as telas do romance homônimo do escritor sueco Pär Lagerqvist, que lhe valeu o premio Nobel de 1951. Agnóstico como o seu personagem principal, Lagerqvist transpõe para a página escrita sua pessoal inquietação diante do infinito, sua dúvidas, seu laico deter-se no limiar da fé. Um poema dele pode dar pistas para a leitura de sua obra assim como da película que apresentamos.

É meu Amigo um desconhecido, alguém que não conheço. / Um desconhecido distante, distante. / Por ele o meu coração está cheio de saudades / Por que ele não está junto a mim? / Talvez porque não exista de verdade? / Quem és tu que preenches o meu coração com tua ausência? / Que preenches toda a terra com a tua ausência?







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