domingo, 8 de setembro de 2013

Os riscos da radicalização ideológica

Artigo de Carlos Orsi no blog dele para reflexão:

Do risco de só se ver canalhas do outro lado

Enquanto pesquisava para a reportagem sobre teorias da conspiração que saiu na edição de julho da revista Galileu, encontrei alguns artigos de psicólogos e cientistas políticos que mencionavam o fenômeno da polarização: em linhas gerais, quando um grupo de pessoas que têm uma opinião comum, ainda que moderada -- digamos, que o Lula não foi um presidente assim lá tão bom quanto se diz, ou que o capitalismo é um sistema que tem lá seus problemas -- se reúne para conversar, existe uma tendência muito forte de que, ao fim do papo, todos saiam do encontro um pouco mais radicalizados do que entraram.

No caso do exemplo acima, seria, numa caricatura exagerada, como se os críticos moderados de Lula saíssem declarando-o o pior presidente da história, ou os defensores da reforma sutil do capitalismo saíssem berrando por la revolución. O problema com esse efeito de polarização é que ele raramente se baseia em evidências ou argumentos: trata-se apenas de um efeito de manada, da tendência que temos em reforçar o que nos liga ao grupo com que nos identificamos e "aparar" diferenças.

Como cada peixe de um cardume corrige sua rota a partir da observação da posição relativa dos que estão mais próximos, assim os seres humanos tendemos a administrar nossas emoções e, por tabela, nossas ideologias.

A polarização, ao mesmo tempo em que aumenta a solidariedade interna do grupo (mesmo que, muitas vezes, ao preço de sacrificar uma visão mais sóbria da realidade) tende a excitar a desconfiança e a hostilidade aos de fora.

Nessas horas, é fácil citar casos claramente patológicos, como o da Família Manson, ou trágicos, como o de David Koresh, mas é importante notar que isso acontece com todo mundo, o tempo todo: se eu acredito em X, e a esmagadora maioria das pessoas cuja companhia valorizo e cuja inteligência e bom-senso respeito também acreditam em X, então quem não acredita em X é ou idiota ou está de má-fé. O raciocínio é tão límpido, tão inescapável, que mobiliza as paixões mais intensas. Mesmo sendo inválido.

Como qualquer neurocientista -- ou publicitário -- terá prazer em lhe explicar, o cérebro humano é construído de forma que associações fortes e frequentes entre eventos tendem a se tornar automáticas e quase que permanentes no espaço mental. Assim, depois de algum tempo, você não conclui mais que quem diz não-X possivelmente é idiota ou talvez esteja de má-fé. Você sente, nas entranhas, de modo automático, que a pessoa na sua frente é um imbecil indigno de respeito. Daí à desumanização, é um pulo. E da desumanização à crença de que os fins justificam os meios -- de que "nada é ruim demais" para "essa corja" -- é outro, razoavelmente menor.

Some-se a isso fato de que mensagens simples e diretas são mais facilmente assimiladas que discursos complexos e cheios de nuances, e o caldo está feito.

Toda a peroração acima foi motivada pelo estágio atual do debate sobre a questão dos médicos cubanos, em particular, e pelo estado do Fla-Flu ideológico brasileiro, em geral, que cada vez menos parece uma disputa entre times e, cada vez mais, uma briga de torcidas, e das feias, com lança-foguetes e cadeiradas pra todo lado.

Quem acompanha o blog há algum tempo sabe que não tenho nada contra o uso tático de retórica forte, mas há linhas a traçar entre discurso, incitação e ação, traçadas séculos atrás por Stuart Mill, que é sempre bom ter em mente. Como é sempre bom ter em mente a diferença entre fato e metáfora, e entre verdade incômoda e mentira conveniente (para ficar num caso só, que vem se mostrando especialmente virulento no ambiente maniqueísta das redes sociais, as doações do Criança Esperança vão para a Unesco, não para a Rede Globo).

Polarização, solidariedade para com os colegas de grupo, desconfiança para com os de fora são fenômenos humanos, naturais. Mas ciúme também é, e quando as pessoas começam a apedrejar jornalistas, ou médicos falam em deixar pacientes à própria sorte, parece que estamos chegando perigosamente perto do equivalente ideológico de uma onda de crimes passionais.

Há quem diga que as redes sociais agravam a polarização, criando espaços onde as pessoas conseguem filtrar as verdades inconvenientes que poderiam desmontar seus maniqueísmos particulares, interagindo apenas com quem já concorda, ou tende a concordar, com elas. E o resto flui daí, em cascata.

Mas não precisa ser assim: a capacidade de se pôr no lugar do outro é, à exceção dos psicopatas, tão inata quanto o impulso de seguir a manada. Assim como a de refletir antes de repetir, de respirar antes de se exaltar. E com um pouco de curiosidade honesta, sempre dá para dar uma olhada na posição do adversário e ver se não há algo de razoável ali ou, pelo menos, procurar os verdadeiros erros de raciocínio e de conceito, além das -- supostas ou reais -- falhas de caráter.

O pior efeito da polarização, no espírito humano, é a certeza arrogante de que, fora da nossa posição, seja ela qual for, só existem cretinos e canalhas.



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