domingo, 19 de janeiro de 2014

Como conciliar ciência, razão, criatividade e intuição?

Entrevista interessante do francês Michel Paty, físico e filósofo da ciência, concedida ao Ciência Hoje:

A ciência criativa

Físico-filósofo francês aborda discussão sobre o papel da criatividade e da intuição, orientadas pela racionalidade, na produção científica. Para ele, entender o processo da descoberta pode ser o maior desafio da filosofia da ciência.

Marcelo Garcia

Como surge a descoberta científica? Qual a sua origem? E qual o papel da criatividade nesse processo, no próprio avanço da ciência? Tais indagações, que inquietam e instigam a filosofia da ciência, certamente não têm respostas fáceis ou definitivas, mas podem ajudar a expandir nosso entendimento sobre o próprio fazer científico e sobre a trajetória da ciência nos últimos séculos. Para o físico, filósofo e historiador da ciência francês Michel Paty, diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional para a Pesquisa Científica (CNRS, do francês), há na ciência lugar para a invenção e a intuição, orientadas pela racionalidade.

Em palestra no Colégio Brasileiro de Altos Estudos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o francês abordou, em um português simpático e cheio de sotaque, as mudanças no entendimento filosófico sobre a ciência nos últimos 200 anos. Ele recordou as inovações da ciência que ainda no século 19 afrouxaram o laço entre matemática e natureza, mostrando a distância entre experiência e abstração teórica.

Naquela época, criações como a geometria não euclidiana, que não corresponde à ‘evidência’, e teorias físicas matematizadas e abstratas em eletricidade e magnetismo teriam tornado mais claro o papel da invenção na construção da ciência, segundo Paty. “Apesar disso, na segunda metade do século 20, a concepção da ciência continuava a se basear, de maneira dominante, nas ideias herdadas do empirismo lógico, e a filosofia não estudava, em geral, o processo de descoberta, que ainda parecia dominado pela subjetividade e alheio à racionalidade”, afirmou.

Apesar dessa predominância, o francês destacou que a aproximação entre criatividade e processo científico foi estudada por grandes cientistas e filósofos do século 20 – em especial dois deles, Henri Poincaré e Albert Einstein, cujos trabalhos estudou ao longo da carreira. “Ambos concebiam a descoberta de novidades relacionadas ao conhecimento objetivo como fruto da capacidade de invenção da mente, baseada numa intuição racional que escapa às formas usuais do raciocínio, como a dedução lógica”, disse. “Dessa forma, mesmo que nem sempre seja possível observar as linhas de raciocínio, chega-se a um resultado racional”, analisou.

Nesse contexto, a invenção teria seu lugar assegurado na ciência. Fundamental, a criatividade seria, sim, pessoal (relacionada ao pensamento de sujeitos individuais), mas orientada pela racionalidade – que, por sua vez, não se identifica com a pura e simples lógica. Segundo Paty, essa criatividade seria parte fundamental do processo de elaboração dos conhecimentos científicos e deve ser levada em conta tanto pela filosofia quanto pela história da ciência.

Confira uma entrevista concedida à CH On-line pelo físico e filósofo francês:

CH On-line: O senhor é físico e filósofo, duas áreas que buscam compreender o mundo. Há uma relação natural entre elas?
Paty: Esses dois campos sempre foram próximos. Desde a Antiguidade, muitos físicos, muitos cientistas também eram filósofos, se debruçavam sobre as questões do mundo pelas duas vias. Foi só a partir do século 18 que essa separação começou a aparecer de maneira nítida, aliás, proposital, para assegurar a autonomia da ciência e da filosofia. Mas ela não é total. Se tomarmos o exemplo da cosmologia contemporânea, é impossível negar as questões filosóficas que a área suscita. A constituição da matéria, a presença da vida no universo, o surgimento de uma inteligência como a nossa nesse universo tão grande, a dúvida sobre estarmos sozinhos nele... São questões naturais, que se originam da nossa própria capacidade de indagação, tão própria da ciência.

Houve uma época em que me dediquei totalmente à física, especialmente ao estudo dos neutrinos, que hoje são famosos, mas naqueles tempos eram novidade. E é lógico que eu me colocava questões de natureza filosófica, que o conhecimento objetivo não me permitia responder. Essa aproximação mais clara entre filosofia e ciência acontece intensamente nas áreas de fronteira, mas tais questionamentos podem surgir em qualquer campo de investigação – e mesmo da atividade humana em geral.

E como se dá, no seu entendimento, a conciliação da criatividade e da intuição com a ciência? Ela é realmente possível?
Sem dúvida é possível e necessário conciliar criação científica, racionalidade e objetividade. Um conceito científico considerado numa teoria não é isolado, mas solidário a outros conceitos, forma com eles um conjunto cujas relações são mais ricas do que puramente lógicas. A mudança científica se dá pela transformação do conjunto dos conceitos que fazem parte desse sistema.

A história da ciência deixa ver que tais movimentos não são casuais e têm consistência interna, têm uma razão – justificada posteriormente – ligada à exigência de objetividade. São movidos pela racionalidade e, ao mesmo tempo, têm um lado importante de subjetividade. Cada agente humano envolvido tem reações únicas na formulação e resolução dos problemas, o que resulta numa diversidade de 'estilos científicos'.

O conhecimento, então, avança graças a ampliações da própria racionalidade, muito mais do que pela pura lógica, pois elas permitem possibilidades inéditas de relacionar os elementos conceituais considerados. É como se mudássemos as regras do jogo: passamos a enxergar de forma racional o que antes era impensável, hipotético ou pertencia de forma vaga ao campo de ideologias. As mudanças no entendimento do mundo e na própria ciência despertam a intuição racional, que pode ser concebida como uma visão sintética intelectual dos cientistas daquela época para outras possibilidades, que levam a novas descobertas.

Essa valorização da criatividade significa um reforço da figura do gênio, excêntrico, especial, inigualável, tão presente na opinião comum?
Na verdade, não. Esse estereótipo do gênio é fruto de uma visão superficial da ciência. Claro, nem todos, mesmo os mais famosos e bem-sucedidos cientistas, eram criativos como Einstein e Poincaré. As descobertas estão ligadas também a outros fatores, como o pioneirismo num campo ou a momentos sociais bem aproveitados pelo pesquisador. Precisamos tomar cuidado para não cair em certo ‘relativismo’ e ‘reducionismo’ sociológico a respeito do pensamento científico, mas também é inegável a importância de fatores culturais e sociais de cada época. A ciência do século 21 não teria o aspecto que tem não fosse a sua organização social específica. A pesquisa está inserida na história e na história social, não faz sentido separar homem e sociedade.

Em seu trabalho, o senhor já explorou muito as ideias de Einstein e Poincaré a respeito da criatividade, do estilo científico e do papel da invenção na ciência. Fazendo um paralelo com os dias atuais, qual o papel da criatividade e da invenção na ciência contemporânea?
A grande dificuldade para responder a essa pergunta está na forma que a pesquisa científica tomou a partir da segunda metade do século 20. No tipo de ciência que temos hoje em domínios importantes, a big science, o trabalho é muito coletivo e as experiências são de alta tecnologia, tanto na física, na química e na astrofísica quanto na biologia e na neurociência. Há uma enorme mobilização de pesquisadores, instituições, equipamentos e recursos. Parece ser mais difícil perceber aqui uma originalidade de contribuição dos pesquisadores tomados individualmente.

Porém, se olharmos os conhecimentos produzidos por esse tipo de pesquisa, eles não deixam de ter a mesma natureza de quando o trabalho científico era mais individual: são exprimidos como formas simbólicas organizadas racionalmente, como conceitos e teorias, que são inteligíveis não para um coletivo, mas para sujeitos individuais. Ou seja, somos levados a pensar que a produção de ideias também continua a ser individual. Não é o meio coletivo e sua tecnologia que as gera, mas o trabalho mental individual dos participantes. E isso acontece de forma variada, com mais ou menos originalidade e criatividade, e certamente com um ritmo mais intenso de trocas de ideias entre os pesquisadores, de assimilações e de transformações.

Mas há, sem dúvida, um impacto do trabalho coletivo.
Sim, e há eventualmente um reverso da medalha, que seria a eliminação de ideias menos atraentes pela maioria, direções de pesquisas que são, ao menos provisoriamente, esquecidas. Num regime mais individual e lento, essas ideias tinham mais tempo para maturação. O risco aqui é que certo conformismo leve a privilegiar exageradamente uma das direções possíveis. Isso pode ser constatado na minha antiga linha de estudo, a física das partículas, na procura de teorias unificadas onde muitos jovens optam pela mesma direção de pesquisa – aliás, favorecida pelos critérios sociais que orientam as carreiras de pesquisador. É sem dúvida um assunto complexo que merece estudo adequado.

Nesse contexto, a filosofia da ciência tem dedicado a atenção que deveria ao processo criativo na ciência?
De maneira predominante, desde a segunda metade do século 20, a filosofia da ciência se desinteressou do processo criativo do pensamento científico e o rumo atual da pesquisa socializada não vai ajudar muito a retomar esse tema. Mas acredito que os criadores com ideias originais, mais sensíveis a respeito da natureza do pensamento científico e da forma como ele é capaz de reinventar o mundo e incorporá-lo à cultura dos homens, vão continuar a contribuir com suas reflexões nessa área, como fizeram Poincaré e Einstein em seu tempo. E espero que os filósofos da ciência se abram mais a essa dimensão, levando em conta a realidade da ciência tal como ela é e se apresenta.

Além de físico e filósofo, o senhor já atuou como divulgador da ciência. Qual o papel da divulgação e da educação científicas na nossa sociedade?
Como disse, mais do que nunca a ciência impacta diretamente a cultura, a tecnologia e a sociedade, e isso não pode ser ignorado. A educação e a comunicação científicas são fundamentais para que possamos problematizar os avanços atuais. Essa é uma responsabilidade de todos nós. Os cientistas, filósofos, historiadores e sociólogos da ciência precisam promover essa reflexão lúcida e crítica sobre o conhecimento. O conhecimento científico está centrado na racionalidade, visa à objetividade e, por isso, tem vocação à universalidade, pode ser entendido por qualquer um, em princípio. As gerações que estão por vir dependem disso e a miséria e outros fatores que impedem essa disseminação são crimes contra a humanidade.

Uma questão importante é que a divulgação científica nem sempre é bem feita. Se o objetivo é apenas maravilhar o público, isso não necessariamente aproxima a ciência de suas vidas. É preciso que ela seja uma divulgação crítica, que se indague, que estimule a curiosidade e que ensine os porquês das coisas, desfazendo a imagem dogmática da ciência. Outro aspecto que precisa ser problematizado e abordado é que a ciência e a tecnologia no mundo atual estão integradas num sistema econômico e social específico, o que tem suas consequências.

De fato alguns dos mercados mais lucrativos do mundo hoje envolvem diretamente produtos tecnológicos...
Sem dúvida. Primeiro temos que considerar que o acesso à tecnologia ainda é regido por fatores econômicos e a tecnologia não é para todos. Além disso, vamos pensar nas regras que orientam esse mercado, nas motivações que norteiam o desenvolvimento de novos produtos: será que elas se baseiam no esforço pelo avanço da ciência ou no lucro, na concorrência selvagem, responsável por muitos de nossos problemas atuais? O conhecimento sobre a natureza nos dá o poder de transformá-la, mas como orientar esse poder para o bem da humanidade, e não para o lucro de uma minoria? É, sem dúvida, uma questão atual, de grande importância social e ética.



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