domingo, 4 de janeiro de 2015

Resgatando prostitutas na Índia


Matéria interessante publicada no Brasil Post:

Encontrando amor na zona de prostituição de Nova Déli


Anna da Costa

"Quando descobri o que tinha que fazer, senti como se estivesse me matando, ou matando outra pessoa", disse Salva*. Ela se concentrou na máquina de costura à sua frente e começou a girar a roda mecânica. Logo se ouvia um som de cliques rítmicos, com a agulha se movendo rapidamente para cima e para baixo, o salwar (roupa típica indiana) de um profundo lilás sob ela prestes a ser finalizado.

"Como você descobriu?", perguntei. O som dos cliques foi suspenso por um momento quando ela parou para responder.

"Eles colocaram muita maquiagem em mim. Roupas curtas também. Eu nunca usaria esse tipo de coisa antes e não queria", disse Salva.

"Os clientes chegavam e se sentavam. Sempre que se aproximavam e tentavam algo comigo, eu batia muito neles. Como poderia saber por que estavam ali? Mas claro que depois os pobres caras reclamavam porque tinham gastado dinheiro, e depois eu pagaria por aquilo. Apanhava muito."

Estávamos sentadas no chão de uma sala com poucos móveis, pálidos raios da manhã projetando longas sombras contra paredes amarelas descascadas. Não pude deixar de notar a profunda cicatriz em forma de U que marcava a parte de cima de seu ombro esquerdo. "Você chegou a tentar escapar alguma vez?".

"Muitas vezes", respondeu. "Sempre que recebia uma pequena gorjeta de um cliente, eu a escondia em qualquer lugar secreto pequeno que achava no kotha [bordel], mas nunca conseguia fugir. Eles nos espancavam terrivelmente se tentássemos. Muitas garotas morreram dessa forma na GB Road."

Como muitas das 3,5 mil mulheres que moram e trabalham na maior zona de prostituição de Nova Déli, a GB Road, um agente havia atraído Salva para o local com a promessa de um salário mais de quatro vezes superior ao melhor que poderia encontrar em Kolkata. Apenas quando chegou em Nova Déli que descobriu que não desempenharia tarefas domésticas.

Se passaram 15 anos e, apesar do fato de que Salva agora é livre para deixar a GB Road se quiser, ela, até recentemente, não tinha nem os meios nem confiança para fazê-lo. Seis meses atrás encontrou a Kat Katha, uma comunidade de jovens voluntários cuja missão é capacitar mulheres e crianças da GB Road. Desde então, sua perspectiva começou a mudar.

Classes de costura são uma das muitas formas pelas quais -- por meio da Kat Katha -- mulheres como Salva estão começando a aprender novas habilidades e criar oportunidades para deixar a zona caso queiram.

"As garotas começam nesse tipo de trabalho bem jovens, com 12 ou 13 anos", disse a fundadora da organização Gitanjali Babbar, de 28 anos. "Elas são trancadas nesses lugares e, mesmo se lutam no começo, depois de alguns anos muitas aceitam aquilo como seu destino. Elas acham que não há alternativas."

O espaço alugado pela Kat Katha próximo à GB Road, simples mas adoravelmente decorado, onde estamos sentados com Salva, também se tornou uma escola para 16 das crianças que vivem nos bordéis, onde frequentam as aulas seis, e às vezes sete dias por semana.

Muitas mulheres estão conectadas à "Kat Family"-- como elas se autodenominam -- por meio de suas repetidas visitas aos bordéis onde não apenas frequentam as classes, mas também estão desenvolvendo uma série de programas adicionais para fornecer serviços de saúde e educação sobre direitos constitucionais para as mulheres.

"Queremos que cada mulher e criança nesse caminho não viva uma vida de marionete, mas que tenham uma vida que eles próprios escolheram", disse Babbar, explicando sua escolha pelo nome "Kat Katha', que significa "A História das Marionetes".

Um mundo paralelo


A GB (Garstin Bastion) Road está localizada no coração de Nova Déli, conectando estações de trem novas e antigas com suas longas e empoeiradas vias. Um mundo paralelo se esconde nas ruínas de edifícios de três e quatro andares. Invisível para a maioria, esse mundo se reflete nos rostos abatidos e maquiados de mulheres que já passaram da sua melhor fase, que se sentam na ponta de escadas escuras chamando os clientes. Também dá pistas nos olhares de homens, velhos e novos, em direção às mulheres de lábios vermelhos que acenam de janelas com grades.

Foi no começo de 2011, enquanto trabalhava para a Organização Nacional de Controle da Aids da Índia (NACO, na sigla em inglês), que Babbar visitou a GB Road pela primeira vez. "Sabia que existia, mas nunca poderia imaginar que fosse tão ruim", disse. "Quando você vê seres humanos vivendo dessa maneira, começa a questionar tudo."

Os 70 bordéis da área são muito apertados e imundos. À medida que subimos as escadas escuras, quartos com bancos forrados se espalham à esquerda e à direita, grupos de mulheres vestidas em uma variedade de salwars e saris surrados, ou roupas ocidentais apertadas. Às vezes, são chocantemente jovens. Nos kothas mais populares, como o 'número 64'-- conhecido por suas lindas garotas do Nepal -- homens, jovens e velhos, se movimentam pelos vários andares em filas quase contínuas. Alguns vêm sozinhos, outros em grupos barulhentos. São frequentemente altos, às vezes violentos; às vezes descarados, outras envergonhados.

"Algumas atendem até 40 clientes por dia, todos nestas incrivelmente pequenas e sujas cabines", disse Babbar. "Você sente que vai pegar uma infecção só de olhar para elas; são muito ruins".

A taxa de HIV na área, de 8%, supera em 26 vezes a média nacional. E as mulheres sofrem de uma série de outras doenças, como infecções da pele, problemas de pulmão, desnutrição e outras doenças sexualmente transmissíveis. A maioria desses problemas não é tratada -- as mulheres não querem sair dos bordéis ou não podem arcar com o tratamento médico.

Não é apenas a saúde física das mulheres que é impactada pela vida na GB Road.

"Depois de viverem aqui por anos, muitas estão sofrendo distúrbios mentais", disse Babbar. "Depressão, ansiedade e insônia são muito comuns."

Fatima, agora com 38 anos, mora em uma sacada minúscula que se amontoa sobre um dos vales atrás da GB Road. Exposta aos piores elementos da cidade, ela divide uma cama de solteiro de vime e um cobertor com seu filho de 11 anos, Atif. Suas roupas são penduradas com alguns pregos enferrujados que foram martelados na parede. Fatima foi contrabandeada para um dos khotas vinda de um pequeno vilarejo perto de Bangalore, quando tinha 13 anos. Hoje precisa ser medicada diariamente para controlar seu temperamento, que pode mudar de forma repentina.

"Quando minha mãe fica brava, eu corro e me escondo", disse Atif, que foi uma das primeiras crianças a frequentar a Kat Katha. "Vou para qualquer lugar até ela se acalmar."

Em setembro de 2011, Babbar deixou seu emprego na NACO. Apesar de não precisar continuar indo à GB Road, suas visitas continuaram quase que incessantemente. "Só sabia que queria entender melhor a situação", disse. Mesmo quando mudou para Agra, uma cidade a duas horas e meia de distância, ela voltava todos os fins de semana para visitar os bordéis, onde se sentava para "apenas conversar" com as mulheres.

Em uma visita em particular, a dona de um bordel, que pensava que ela ainda trabalhava para a NACO, gritou com raiva: "Por que você continua vindo aqui? A única coisa que vocês falam com a gente é sobre preservativos e sexo. Vocês nunca perguntam quais são nossos sonhos, ou se queremos fazer alguma coisa diferente com nossas vidas."

Chocada por essas palavras, Babbar começou a refletir sobre elas. Quando retornou à GB Road dias depois, perguntou à Asha, uma profissional do sexo da qual havia se aproximado, o que ela mais queria. Sua resposta imediata foi: "Quero estudar".

Em pouco tempo, Babbar estava dando classes em bordéis e envolvendo um grupo de amigos para ajudá-la.

Construindo uma família


Salva é uma das 40 mulheres que iniciaram algum tipo de treinamento de habilidades com a Kat Katha desde aquela época, e está entre as três, incluindo Asha, que deixaram totalmente a prostituição. De quatro a cinco vezes por semana, Salva aprende técnicas de costura durante algumas horas pela manhã.

"Eu não confiava neles no começo", confessa, enquanto continua a girar a roda de sua máquina de costura. "Eu costumava pensar 'o que faria se eu fosse para a escola. Poderia ficar aqui em vez disso e ganhar algum dinheiro'. Mas agora sinto que pelo menos posso aprender alguma coisa, e me tornar alguma coisa."

Embora Salva tenha sido atraída pela oportunidade de se especializar, há algo mais sobre a Kat Katha, diz, que realmente valoriza. "Em outros lugares, as pessoas pediriam dinheiro antes de ensinar qualquer coisa, mas a coisa boa sobre esse lugar é que não fazem isso."

"Nos ensinam outras coisas boas também. Eles nos orientam. Pude conhecer muitas pessoas ótimas aqui. Quando cheguei aqui descobri tudo isso -- não sabia antes. Embora sejamos tão inferiores, eles ainda nos cumprimentam com as mãos dobradas. Isso diz algo sobre o [lado] humano deles. Eles demonstram muito respeito", acrescentou.

Para Ritumoni Das, de 28 anos, outra fundadora da Kat Katha, a diferença é simples. "Estamos criando uma família, não executando um projeto."

A importância de criar relacionamentos próximos é essencial para quebrar o estigma que essas mulheres e crianças sentem, diz. "Você não consegue simplesmente tirar uma garota de um bordel. Elas têm essa crença em suas mentes e corações de que pertencem a uma comunidade que não é aceitável. Até que consigam superar essa crença, será muito difícil para elas deixar esse mundo, mesmo se elas tiverem dinheiro ou qualificações."

De fato, é provável encontrar voluntários visitando suas didis (irmãs) nos bordéis, comendo e conversando com elas e comemorando aniversários e festivais, como também dando classes.

"Agora sinto que pelo menos posso aprender alguma coisa e me tornar alguma coisa"

Neste Diwali, a festa religiosa hindu, com a chegada da noite e luzes começando a brilhar em toda a cidade, me juntei às crianças e a um grande grupo de voluntários para acender velas pelos bordéis da área, e comemorar o festival das luzes em tempos sombrios da Índia. Em meio a um grande fluxo de clientes, distribuímos doces e abraçamos cada uma das mulheres, uma por uma.

"Ninguém da Kat Katha me pergunta de onde sou, nada. Sou tratada pelo que sou. Quando os voluntários comem conosco, compartilham nossos pratos. Nos tratam como irmãs", disse Maya, de 26 anos, que recentemente começou a frequentar classes de hindi na escola.

"Somos tratadas como pessoas reais: um ser humano com coração e alma. Não nos rotulam como profissionais do sexo ou filhos de profissionais do sexo", acrescentou Rekha, cujo filho de oito anos tem ido às aulas da Kat Katha no último ano.

Muitas das crianças que frequentam as classes também estão começando a notar as mudanças dentro de si mesmas, desde que passaram a fazer parte da 'Kat Family'. "Me sinto feliz quando venho aqui", disse Varun, um inteligente e generoso garoto de 14 anos que foi um dos primeiros alunos. "É um lugar agradável e aqui encontramos amor. Pensei que não seria nada e nunca conseguiria muita coisa, mas agora quero ser fotógrafo."

Os esforços da Kat Katha na GB Road não ficaram livres dos desafios. Nos últimos dois anos, tiveram que mudar de endereço seis vezes. A razão é quase sempre a mesma. As crianças não são um problema. Mas o proprietário e vizinhos simplesmente não querem profissionais do sexo nas redondezas.

"Não quero que minha filha saiba o que faço, nem que seja afetada pelo meu passado"

Os voluntários também receberam ameaças de donos de bordéis, partidos políticos, cafetões e mesmo da polícia por causa do envolvimento da organização com as mulheres. Mas, com o tempo, mesmo essas ameaças começaram a diminuir à medida que a presença da ONG se tornou cada vez mais aceita.

"Todo mundo precisa de alguém para conversar", explicou Das em tom sincero, atribuindo essa mudança à abordagem inclusiva e sem confronto.

Até agora os voluntários -- que já chegaram a somar mais de 150 -- estabeleceram vínculos com mais de 48 bordéis da estrada e mais de mil mulheres. Com o contínuo crescimento, estão cientes de que precisarão de mais estrutura em relação à sua forma bastante fluída até agora.

"Temos sido bastante descoordenados, apenas respondendo às necessidades que surgem. Agora estamos tentando formalizar as coisas", disse Das. Isso inclui aumentar o número de cursos disponíveis para as mulheres, organizar melhor o crescente grupo de voluntários e construir um albergue para as crianças fora da área. Também envolve encontrar uma fonte mais confiável de financiamento.

"Queremos alcançar cada mulher e cada criança nessa estrada", disse Babbar.

Apesar do longo caminho pela frente, Babbar está satisfeita com os esforços iniciais. "Não estamos alcançando todas as mulheres mas, nos últimos dois anos, fomos capazes de ir a muitos bordéis e estabelecer conexões; indo com um sentimento de família."

Para Salva, seu encontro com a Kat Family foi um ponto de virada. Quando se levantou para ir embora, o seu telefone tocando com mais frequência com os clientes começando a ficar impacientes, dobrou o salwar lilás que estava costurando em um embrulho bem-feito.

"Desta vez, quando voltar para Bengal, nunca mais retornarei à GB Road. Vou trabalhar em casa, abrir uma pequena alfaiataria, pagar os estudos da minha filha e ficar com ela", disse. "Talvez ganhe apenas 50 rúpias por dia (cerca de 2 reais), mas pelo menos posso comprar meus mantimentos com isso. Quero viver com sabedoria agora. Não quero que minha filha saiba o que faço, nem que seja afetada pelo meu passado."

Ao ver sua silhueta robusta e curvilínea deslizar pelas escadas íngremes e pelo vale por trás da GB Road, me dei conta que, além das classes, o espaço seguro, os serviços de saúde e tudo o que a Kat Katha começa a oferecer aqui, talvez uma das coisas mais valiosas seja simplesmente a oferta de amor.

* Os nomes de todas as mulheres e crianças nesta reportagem foram mudados para proteger suas identidades.

Este artigo foi originalmente publicado pelo HuffPost Índia e traduzido do inglês.



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