domingo, 5 de julho de 2015

Francisco, o único papa-profeta?

Eugenio Scalfari e o papa Francisco

É esta a pergunta que se faz Eugenio Scalfari, fundador do jornal italiano La Repubblica, talvez o pensador italiano mais importante da segunda metade do século XX para cá.

Scalfari, que completou 91 anos de idade em abril, é ateu e tem tido encontros com o papa Francisco, como ele relata no artigo abaixo, o que reforça a importância de sua leitura neste domingo gelado no Centro-Sul do Brasil.

Não deixa de ser interessante ver como um pensador ateu - moderado, de renome, e que efetivamente conversa com o papa - retrata o pontífice.

O artigo foi traduzido e publicado pelo IHU:

Papa Francisco, profeta que encontra a modernidade


Francisco não é apenas um papa, mas um profeta ou, melhor, sobretudo um profeta e um pastor. É a figura mais relevante do século em que vivemos. 



A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 01-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto. 

Eis o texto.


É preciso reler o Cântico de Francisco de Assis, que, justamente para essa releitura, foi publicado abaixo e que o Papa Bergoglio colocou como título da sua primeira encíclica. Ele ilumina todo o documento do papa, explica por que Bergoglio assumiu o nome de Francisco, que nunca tinha sido usado nos dois mil anos de história da Igreja e, principalmente, dá significado e resposta a uma pergunta que muitos, fiéis e não fiéis, se fizeram: por que o Papa Francisco dedica a sua primeira encíclica à ecologia? Não existem outros problemas muito mais urgentes e dramáticos nestes tempos obscuros que estamos atravessando?

Certamente existem, e o Papa Francisco os enfrenta um por um em toda a sua plenitude, começando pelo da pobreza, da migração de povos inteiros já sem-terra, das guerras que afligem o mundo, do egoísmo imperante, da intolerável desigualdade econômica e social. Ele não se dirige apenas aos cristãos, mas a todos os homens que Deus criou com a terra, confiando eles à terra e o cuidado da terra a eles, isto é, a nós.

Todos os comentaristas da encíclica que, nestes dias, leram o seu texto sublinharam concordemente essas "passagens", dando-lhes, obviamente, interpretações diferentes. Por isso, para mim, que voluntariamente não me pronunciei até agora sobre temas que sempre me interessaram e que, nos últimos meses, muitas vezes, tive a oportunidade de discutir diretamente com o Papa Francisco, só restaria reconhecer tanto a encíclica, quanto a preparação do Sínodo, que irá ocorrer em outubro próximo, quanto as intervenções de Francisco ocorridas logo depois da publicação da encíclica, quanto o seu encontro com os valdenses em Turim, quanto, por fim, os comentários que essa imensa quantidade de trabalho religioso e pastoral provocou, para sair daó mais rico em conhecimento.

Certamente é isso, eu saio enriquecido e mais informado da política religiosa que Francisco leva em frente com ritmo cada vez mais apressado. Mas me faço duas perguntas que merecem aprofundamento e resposta: quem é verdadeiramente o Papa Francisco? E quem é verdadeiramente Jorge Mario Bergoglio?

Cada papa tem traços salientes que configuram o papel que ele desempenhou na história do cristianismo. Mas esse papel e os efeitos que ele provocou nas sociedades da época em que esse papa viveu e agiu, decorrem da personalidade do homem que, em um certo ponto da sua vida, foi chamado a se sentar no trono de Pedro. O caráter da pessoa determina o cargo que ocupa, mas, ao mesmo tempo, a carga cria delineamentos novos nessa pessoa.

Responder a essas duas perguntas que eu me fiz já não só é possível depois de dois anos de pontificado, mas também necessário para entender o que está acontecendo na Igreja e o que provavelmente irá acontecer enquanto Francisco exercer o seu magistério na cátedra de Pedro.

* * *

Francisco não é apenas um papa, mas um profeta ou, melhor, sobretudo um profeta e um pastor. Que eu saiba, isso nunca tinha acontecido antes dele; papas pastores talvez sim, alguns, poucos, contudo. Abundam na história da Igreja papas diplomatas, ou guerreiros, ou místicos, ou litúrgicos, ou legisladores, ou organizadores. Profetas, não, não houve nenhum. Paulo de Tarso também foi profético, além de legislador e fundador da religião cristã. Agostinho igualmente, e Jerônimo, e Boaventura, e Anselmo, e Francisco de Assis e muitos outros, mas não eram papas, não eram bispos de Roma.

Francisco, ao contrário, é. Devemos dizer que a excepção confirma a regra e que, depois dele, não haverá outro como ele? Temo que sim, temo que ele continue sendo uma exceção, mas o impulso que ele está dando à "Ecclesia" mudará profundamente o conceito de religião e de divindade, e isso continuará sendo uma mudança cultural dificilmente modificável.

Mas por que eu digo profeta? Em que consiste a sua profecia e o seu conceito de divindade? Deus é Um em todo o mundo e para todas as gentes. Naturalmente, a afirmação vale apenas para quem tem fé em um além e em um Criador.

A unicidade do Deus criador exclui todo fundamentalismo, toda guerra religiosa, toda divindade múltipla. A própria Trindade, mistério da fé católica, muda de natureza, e Francisco disse isso várias vezes e, precisamente nos últimos dias, ainda mais claramente, em Turim, quando respondeu às perguntas de três jovens diante de milhares de pessoas reunidas para ouvi-lo.

Ele disse que o Espírito Santo é o Espírito de Deus que suscita no coração dos homens a vocação ao bem, e o Filho é Deus que ama as suas criaturas e suscita o amor humano em todas as suas castas formas. Esta é a Trindade: não mais o mistério da fé, mas a articulação do único Deus, misericordioso, amoroso, criador e, portanto, Pai.

A misericórdia é infinita, o pecado faz parte das contradições inerentes à Criação, necessária riqueza de cada criatura individual que não é o clone das outras. As contradições contêm amor, perdão, mas também raiva contra as injustiças sofridas e vergonha por aquelas cometidas contra os outros. Nas contradições, há riqueza e pecado ao mesmo tempo. A misericórdia do Pai também é transmitida às suas criaturas, e são os pastores que a ensinam e a praticam, eles por primeiro.

Talvez, o Papa Francisco ainda não tirou uma consequência teológica dessa sua visão profética, que ele está levando em frente todos os dias: ele não é mais o Vigário de Jesus Cristo na terra, mas é o Vigário de Deus, porque Cristo nada mais é do que o amor de Deus, não um Deus diferente que se encarnou, viveu 33 anos, começou a pregação aos 30 anos e foi crucificado quando o imperador Tibério tinha acabado de ser empossado pelo Senado depois da morte de Otaviano Augusto.

Os Evangelhos relatam essa história, mas os evangelistas – exceto, talvez, João –, escreveram relatos de segunda mão e nunca conheceram o Jesus de quem descrevem a vida e a pregação. Quanto a Paulo de Tarso, fundador da religião que tomou o nome de Cristo, ele não conheceu e nunca se encontrou com Jesus de Nazaré. No entanto, foi justamente Paulo o fundador. Se fosse por Pedro, o cristianismo teria permanecido como uma seita judaica, definida pelos seus seguidores como "judaico-cristã", como na época havia muitas: os fariseus, os essênios, os zelotas e outros ainda, com o Sinédrio na cúpula, administrando a Lei e o Templo que era a sua sede.

Assim era concebida a comunidade judaico-cristã liderada por Pedro e por Tiago, que Paulo forçou a sair de Jerusalém e a abrir a nova religião por ele fundada no mundo circunstante, no Oriente Médio, na Grécia, no Egito, em Roma e, de lá, a todos os territórios do Império, isto é, toda a Europa.

O Jesus relatado pelos Evangelhos provavelmente existiu, provavelmente pregou. A sua pessoa foi teologizada, as comunidades cristãs criaram uma doutrina, uma liturgia, um direito canônico. Nos textos decorrentes dessa doutrina, Deus também é definido como o Deus dos exércitos. O sentido dessa definição é duplo: exércitos de fiéis ou exércitos de guerreiros, combatentes nas Cruzadas, na Inquisição, nas guerras das potências europeias nas quais a Igreja, de vários modos, interveio. O poder temporal do papa a induziu a participar de alianças ou de guerras com Espanha, com a França, com a Áustria, com o Império, com Veneza.

Esse foi o papado até 1861, quando foi proclamado o Reino da Itália. Não por isso o poder temporal dos papas terminou. Ele continuou e, em parte, ainda continua, e Francisco empenhou contra ele a sua luta. A sua visão é uma Igreja missionária, em que a Igreja institucional representa apenas a intendência, destinada a predispor os serviços dos quais a Igreja missionária precisa.

A verdadeira política de Francisco é a de reunificar o cristianismo, folha por folha, ramo após ramo. Nos últimos dias, ele se encontrou com o representante da Igreja Valdense. Nunca tinha acontecido um encontro semelhante. Os valdenses eram cátaros, um movimento cismático que chegou à Itália a partir da Europa central, atravessou toda a planície da Padânia, chegou em Marselha obstaculizado e combatido de todos os modos e, em Marselha, foi massacrado pelas tropas francesas, encorajadas e abençoadas pela Igreja de Roma, que assumiu a responsabilidade por esse massacre.

Pedro Valdo fazia parte dessa comunidade, mas, tendo chegado aos vales do Piemonte, decidiu parar ali. Ele também sofreu ataques e vexações de todos os tipos. Não são muitos os valdenses, mas, religiosamente, são uma comunidade importante e respeitada.

Pois bem, o Papa Francisco os encontrou em Turim há poucos dias e, em nome da Igreja Católica, invocou o seu perdão; os valdenses o agradeceram "do fundo do coração". Logo se verão novamente e abrirão um discurso mais desafiador. O objetivo de Francisco é de abrir a Igreja a todas as comunidades protestantes e reuni-las. Deus é único, e os cristãos devem voltar a ser uma única religião, mas isso não basta. Não por acaso, Francisco também abriu com os muçulmanos, porque o seu Deus é o mesmo dos cristãos.

Não é profético esse pensamento? E não é profético o título da encíclica? O Santo de Assis agradece a Deus pela morte corporal que é prevista pela criação. A morte é um dom. Eis por que eu digo que Francisco é o Vigário de Deus, que o Espírito Santo decidiu colocar no sólio de Pedro.

* * *

Mas Jorge Mario Bergoglio era assim também antes de se tornar papa? O cargo que ele já ocupa há dois anos o mudou ou foi ele que mudou o papel?

Eu me encontrei com o Papa Bergoglio quatro vezes e escrevi muitas vezes sobre ele. Permito-me dizer que nos tornamos amigos. Se Deus é único em todo o mundo, a Igreja também só pode ser uma e, justamente porque é uma em todas as partes, ela não pode e não deve se ocupar com a política.

Igreja livre em Estado livre era o lema de Cavour, mas eu diria que, agora, também é o lema de Bergoglio. O outro lema que justamente Bergoglio me indicou em um dos nossos encontros é: "Ama o teu próximo mais do que a ti mesmo". Com essa frase, ele se dirige a toda a sociedade do mundo e aos ricos, especialmente, porque são eles que devem dar, e a recompensa está apenas no dar sem nada exigir em troca, a não ser o amor de Deus.

Bergoglio sabe perfeitamente que o mundo está vivendo em uma sociedade globalizada, sabe que há um povo de "sem-terras" de mais de 60 milhões de pessoas que vagam pelo mundo em busca de dignidade e de vida.

Por fim, Bergoglio também se propôs a mudar a estrutura da Igreja, que até agora foi vertical. Ele quer colocar ao lado dessa estrutura vertical também uma estrutura horizontal: os Sínodos, aos quais acorrem os bispos de todo o mundo. Desse ponto de vista, ele adotou a ideia central do cardeal Martini, do qual era um bom amigo e que votou nele no conclave do qual o cardeal Ratzinger saiu papa.

Uma Igreja vertical e horizontal: essa é a estrutura que Francisco está implementando e, com ela, um relançamento religioso das Conferências Episcopais que devem agir todas em terra de missão, porque a Igreja deve ser, em todas as partes, missionária.

Em um dos nossos encontros, perguntei ao Papa Francisco se não seria o caso de convocar um novo concílio que reconheça e dê o seu selo a todas essas novidades, mas ele me respondeu: "O Vaticano II pôs como o seu principal objetivo o de se encontrar com o mundo moderno. Essa declaração conciliar é muito importante, mas, desde então, não deu um único passo à frente. Por isso, eu não preciso convocar outro concílio. Ao contrário, devo aplicar concretamente o Vaticano II, e é isso que estou tentando fazer: o encontro com a modernidade".

Esse encontro irá levantar problemas enormes: a modernidade ocidental nasceu do Iluminismo e aportou no relativismo; não há nada de absoluto, começando pela verdade. Francisco, naturalmente, responde a esses problemas, salientando a importância da fé, mas isso não exclui o fato de que o encontro com a modernidade levantará problemáticas totalmente novas que apenas um papa-profeta poderá entrever e gerir.

Desejo-lhe longa vida, convicto como estou de que ele é a figura mais relevante do século em que vivemos.




O CÂNTICO DAS ESCRITURAS
São Francisco de Assis

Altissimu, onnipotente bon Signore, tue sò le laude, la gloria e l’honore et onne benedictione.
Ad te solo, Altissimo, se konfano et nullu homo ène dignu te mentovare.
Laudato sie, mi’ Signore, cum tucte le tue creature, spetialmente messor lo frate Sole, lo qual è iorno et allumini noi per lui. Et ellu è bellu e radiante cun grande splendore: de te, Altissimo, porta significatione.
Laudato si’, mi’ Signore, per sora luna e le stelle: in celu l’ài formate clarite et pretiose et belle.
Laudato si’, mi’ Signore, per frate vento et per aere et nubilo et sereno et onne tempo, per lo quale a le tue creature dài sustentamento Laudato sì’, mi’ Signore, per sor’acqua, la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta.
Laudato si’, mi’ Signore, per frate focu, per lo quale ennallumini la nocte, et ello è bello, et iocundo et robustoso et forte.
Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra matre terra, la quale ne sustenta et governa, et produce diversi fructi con coloriti flori et herba.
Laudato sì’, mi’ Signore per quelli ke perdonano per lo tuo amore et sostengono infirmitate et tribulatione. Beati quelli ke ‘l sosterranno in pace, ke da te Altissimo, siranno incoronati.
Laudato sì’, mi’ Signore, per sora nostra morte corporale, da la quale nullu homo vivente po’ skappare: guai a quelli ke morrano ne le peccata mortali; beati quelli ke trovarà ne le tue santissime voluntati, ka la morte secunda no ‘l farrà male.
Laudate et benedicete mi’ Signore et ringratiate e serviateli cum grande humilitate.
Altíssimo, omnipotente, bom Senhor, a ti o louvor, a glória, a honra e toda a bênção.
A ti só, Altíssimo, se hão-de prestar e nenhum homem é digno de te nomear.
Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o meu senhor irmão Sol, o qual faz o dia e por ele nos alumias. E ele é belo e radiante, com grande esplendor: de ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Lua e as Estrelas: no céu as acendeste, claras, e preciosas e belas.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Vento e pelo Ar, e Nuvens, e Sereno, e todo o tempo, por quem dás às tuas criaturas o sustento.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão Fogo, pelo qual alumias a noite: e ele é belo, e jucundo, e robusto e forte.
Louvado sejas, ó meu Senhor, pela nossa irmã a mãe Terra, que nos sustenta e governa, e produz variados frutos, com flores coloridas, e verduras.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor e suportam enfermidades e tribulações. Bem-aventurados aqueles que as suportam em paz, pois por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal, à qual nenhum homem vivente pode escapar. Ai daqueles que morrem em pecado mortal! Bem-aventurados aqueles que cumpriram a tua santíssima vontade, porque a segunda morte não lhes fará mal.
Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe graças e servi-o com grande humildade.




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