quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Pacientes com hanseníase continuam isolados no Brasil

O Brasil já teve trens para carregar pacientes de "moléstias contagiosas".
Qualquer comparação com certos trens europeus de carga que carregavam gente
em meados do século XX  (para extermínio) não é de todo despropositada...

Sim, senhores, estamos no ano de 2016 e o país ainda tem um sistema de apartheid para quem sofre de hanseníase, enfermidade conhecida nos tempos bíblicos pelo nome de "lepra".

Foi menos difícil retirar esta palavra do nosso vocabulário (o que foi feito por lei, a de nº 9.010/95, sabia?) do que adotar novas práticas mais dignas e humanas para atender aqueles que sofreram, décadas atrás, a condenação médica de serem apartados do convívio social e familiar.

O horror persiste, para nossa vergonha coletiva.

Parabéns à Agência Brasil e à sua repórter Isabela Vieira por resgatarem esta história que nós imaginávamos pertencer a um passado que - ó céus! - insiste em nos assombrar:

Pacientes denunciam falta de insumos para hanseníase em antigo hospital-colônia

Isabela Vieira - Repórter da Agência Brasil

Há 61 anos, o diagnóstico de hanseníase – doença conhecida popularmente como lepra – foi recebido como uma sentença. O menino Alvinho Gonçalves, hoje com 76 anos, era um adolescente de 15 anos quando soube que seria internado em uma colônia fechada, em Itaboraí, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Do Hospital Estadual Tavares de Macedo, ele não poderia sair para nada, por causa da política de internação compulsória daquela época.

“Nós éramos cinco, em Cantagalo (município da região serrana), meu irmão já tinha tido os caroços [da doença]. Aí, depois de um tempo, apareceu em mim. Ele foi até lá e me buscou. Os vizinhos já queriam colocar fogo na casa com o pessoal dentro”, lamentou.

Por 40 anos, a internação de pacientes com hanseníase era compulsória, para evitar o contágio e foi feita em colônias que cresceram em torno dos hospitais de referência – dos quais ainda restam 33 pelo país. Desde a década de 1980 com tratamento feito em casa, a doença não é transmissível. Em 2007, o governo brasileiro estipulou uma indenização a ser paga a pessoas que passaram pelo confinamento. Quase 12,5 mil pessoas entraram com o pedido e cerca de 9 mil foram atendidas.

As colônias de pacientes cresceram, cercadas por muros de onde ninguém pode sair para nada. Com o tempo, se tornaram verdadeiras cidades dentro das cidades, com vilas de casas, comércio, templos religiosos, quadras de esporte, cemitério e até cadeia com “policiais” da comunidade.

Sem ter para onde voltar, mesmo com o fim da internação ex-internos se estabeleceram no local. Hoje, a antiga colônia do Tavares de Macedo tornou-se um bairro onde vivem 9 mil pessoas em 950 mil metros quadrados, sendo 160 ex-internos, em casas de vilas, pavilhões e alguns na enfermaria – caso dos que sofreram amputações por tratamentos equivocados do passado. No entanto, apesar de o Tavares de Macedo – hoje um hospital-geral – ser referência na doença, a situação da unidade é de abandono, segundo os ex-internos, pacientes e funcionários.

“Está cada vez pior. Antes tinha curativo – gaze, atadura, esparadrapo – [no hospital] e agora não tem mais nada”, contou Alvinho, que acabou montando um pequeno estoque, em casa, com a aposentadoria, para trocar os curativos diariamente. “Até para marcar uma consulta está difícil”, diz ele, que acaba recorrendo aos vizinhos em casos de emergência.

No ambulatório e no prédio central do hospital, a farmácia e a sala de curativos estão vazias. Faltam desde fraldas geriátricas a medicamentos para a própria hanseníase, como a talidomida* e óleo mineral para a pele, que fica ressecada. Também faltam remédios para doenças crônicas, como diabetes, comum nos idosos. Biópsias não são feitas há dois meses por falta de contrato com laboratórios.

“Aqui é assim: gente vai com a receita e volta sem remédio, porque não tem mais”, contou Neidmar Costa da Silva, de 60, ex-interna, paciente e moradora da época da ex-colônia.

Além da falta de insumos, o próprio atendimento está prejudicado com cortes na equipe. Atendentes para marcar consultas e para o serviço administrativo, terceirizadas, estão há um mês sem salários, trabalhando como voluntárias, para não prejudicar os idosos ex-internos.

“A gente sabe que, além da dificuldade para conseguir atendimento na rede pública, só tem hospital em outro município, e um paciente desse [ex-interno] quando é atendido fora daqui, ainda pode sofrer com o preconceito, esses idosos têm sequelas (úlceras, amputações, dedos tortos)”, explicou à Agência Brasil uma das funcionárias, sob a condição do anonimato.

Com a crise no hospital, as doações que chegam para os ex-interno pela Caixa Beneficente da comunidade, instituição filantrópica, não têm sido suficientes. “Tem gente aqui que precisa fazer curativo até o joelho. Faz três vezes ao dia”, disse a gestora, Sônia Regina de Freitas, de 49 anos. Ela se preocupa com a chegada do verão que pode agravar a situação.

“Com o calor, tem que refazer mais vezes, [porque as feridas] cheiram [mal]”, contou ela, que também já teve hanseníase e acabou se estabelecendo na antiga colônia.

Crise econômica sobrecarrega a unidade

Segundo os pacientes e funcionários, apesar da dedicação dos médicos e servidores, o Tavares de Macedo sofre com a falta de recursos do estado. O dinheiro, que já era insuficiente, ficou reduzido com a crise financeira, relacionada à queda dos preços do petróleo no Rio.

O problema também está relacionado à sobrecarga no atendimento em Itaboraí. O município, que também passa por uma crise, fechou o principal hospital por falta de dinheiro para pagar os médicos. Com isso, os balanços mostram que a média de pacientes só no ambulatório, para consultas, curativos, exames e biópsias, dobrou no primeiro semestre de 2016, chegando a 4 mil por mês.

O vice-coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), Artur Custódio afirma que a situação do Tavares de Macedo é de abandono e denuncia o que chama de “jogo de empurra”. “O governo do Rio tenta repassar ao município atribuições que devem ser compartilhadas. Precisa existir uma preocupação com a dívida social que o Estado brasileiro tem”.

O atual prefeito da cidade de Itaboraí, Helil Cardozo, informou que ofereceu insumos ao hospital estadual, mas que foram recusados pela direção, que não explicou o motivo.

Em nota, a Secretaria de Saúde respondeu que o Tavares de Macedo “vem reunindo todos os esforços para garantir a assistência aos pacientes”, e que não há “desassistência”. Porém, não informou sobre a compra de insumos e regularização de contrato terceirizados.

Para regularizar o atendimento no Hospital Municipal Desembargador Leal Júnior, no centro, o prefeito de Itaboraí disse que o pagamento dos médicos foi depositado na última quinta-feira (19). A expectativa é de que atendimento seja regularizado nos próximos dias.

A antropóloga e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Carly Machado, que estuda antigas colônias de hansenianos no país, acredita que a direção do hospital, prefeitura e estado devem buscar uma “solução triangulada”. Ela pondera que, para o município, é difícil assumir todos os custos com o novo bairro de uma vez, e há uma sobreposição de entendimentos sobre as obrigações no local. “Esses lugares são verdadeiras cidades dentro das cidades, o impacto [financeiro] disso é grande, é preciso contar com os governos e com apoio da comunidade”, afirmou.

*Apesar dos efeitos adversos graves, a talidomida é utilizada para diminuir as dores de pacientes com hanseníase. O remédio não pode ser vendido e é fornecido pelo Ministério da Saúde.



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