sábado, 13 de maio de 2017

Adeus a Antonio Candido, o intelectual que melhor entendeu os caipiras


O Brasil perdeu ontem Antonio Candido, um de seus poucos e valorosos "gênios da raça".

"Perdeu" não é o verbo correto, pois o que ganhamos com sua profícua vida de 98 anos de idade é algo absolutamente imensurável.

"Perdemos" a sua existência corporal, a sua presença entre nós como farol intelectual digno do que esta palavra "intelectual", ultimamente tão banalizada, significa em toda sua abrangência, profundidade e extensão.

Sociólogo, crítico literário e - mais precisamente - um "pensador" do Brasil, do tipo que - lamentavelmente - talvez tenha sido o derradeiro, foi professor da USP e da UNICAMP, agraciado com honrarias as mais variadas ao redor do mundo, sobretudo na América Latina.

Para nós, paulistas do interior, "caipiras" segundo a definição que muito nos honra, deixou de legado sua magnífica obra "Parceiros do Rio Bonito", onde faz um detalhado estudo de como surgiu e se desenvolveu essa subcultura brasileira tão marcante e marcada como o "r" retroflexo que insistimos - orgulhosamente - em falarrrrrr.

Abaixo, transcrevemos alguns trechos de Parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Livraria Duas Cidades e Editora 34, 2001.

Divirta-se desvendando nossos segredos, sabendo de onde viemos e conhecendo-nos melhor:




      “De qualquer modo, há para cada cultura, em cada momento, certos mínimos abaixo dos quais não se pode falar em equilíbrio. Mínimos vitais de alimentação e abrigo, mínimos sociais de organização para obtê-los e garantir a regularidade das relações humanas. Formulado nestes termos, o equilíbrio social depende duma equação entre o mínimo social e o mínimo vital.” (p. 32)

     “Sobretudo quando encaramos a obtenção dos meios de vida, observamos que algumas culturas não conseguem passar de um equilíbrio mínimo, mantido graças à exploração de recursos naturais por meio das técnicas mais rudimentares, a que correspondem formas igualmente rudimentares de organização. O critério para avalia-las, nestes casos, é quase biológico, permitindo reconhecer dietas incompatíveis com as necessidades orgânicas, correlacionadas geralmente a técnica pobre, estrutura social pouco diferenciada além da família, representações míticas e religiosas insuficientemente formuladas. É o que se observa em povos ‘marginais’ da Patagônia e sobretudo Terra do Fogo, em nômades como os sirionós, ou os nambiquaras.” (p. 34)

[...]

     “O ponto de partida para compreender essa situação deve ser buscado na própria natureza do povoamento paulista, desde logo condicionado pela atividade nômade e predatória das bandeiras. Do ponto de vista deste estudo, o bandeirismo pode ser compreendido, de um lado, como vasto processo de invasão ecológica; de outro, como determinado tipo de sociabilidade, com suas formas próprias de ocupação do solo e determinação de relações intergrupais e intragrupais. A linha geral do processo foi determinada pelos tipos de ajustamento do grupo ao meio, com a fusão entre a herança portuguesa e a do primitivo habitante da terra; e só a análise desse processo pode dar elementos para compreender e definir a economia seminômade, que tanto marcou a dieta e o caráter do paulista.” (p. 46)

[...]

   “Mas como se dispunha e vivia no campo o grosso da população? Qual a relação efetiva entre a população do núcleo e a do território, frequentemente vasto, de que era o centro?

    Leiamos um documento eloquente e pitoresco: a informação enviada em 1797 pela Câmara da vila de Atibaia ao ouvidor-geral da comarca de São Paulo, como elemento requerido por este, a fim de opinar sobre o pedido de elevação a vila da freguesia de Jaguari, atual Bragança Paulista:
       Tem a capital de Jaguary vinte e cinco fogos existentes, a saber: o Rdo. Coadjtor, o Alferes Aleixo Correia da Cunha, Manoel Rodrigues Freyre que ambos sam Dizimeyros, o alferes José Paes da Silva oficial de sapateyro e selleiro, cujos officios se desligará por falta de vista, e que vive hoje de lavouras, Capitam José Pedroso Pinto oficial de selleiro, e dizem que também tem loja de fazenda seca, o Alferes Joam de Almeyda, velho e mutio doente, por cuja cauza largou o Sitio, e veyo para aquele ARayal, Francisco Pinto oficial de Ferreyro, Joachim Gomes de Moraes Taverneyro, hum carapina que de fora foy para fazer a obra da Igreja. Vicente Gomes Sapateyro, Ignacio bastardo, sapateyro em cujo fogo mora também o Vintenário Francisco Luis Penna, José Teixeyra das Neves mestre de taypas, Roza Domingues mulher branca solteira e pobríssima, Maria de Nazaareth cazada que vive separada de seu marido, Miguel dias Cortes homem branco, cazado e pobríssimo, Anna Maria de Toledo, viúva e pobre, Genoveba de tal branca e pobre, Anna de tal aleijada, Quiteria escrava com taberna, Joam Leme bastardo sego, Maximiano Nunes e Joachim Nunes, ambos pobres.
      Tem o destricto de Jaguary quatro mil, e quatrocentos e tantas Almas: destas as pessoas que tem possibilidade, e cabedais sam o Capitam Jacyntho Rodrigues Bueno, o Alferes Aleixo Correa da Cunha e Manoel Rodrigues Pereira, os quaes conforme o estado daquela freguesia, nella se tem por ricos, e abaxo destes Lourenço rodrigues, o Capitam Antonio Leme, José Xavier e Francisco de Lima que tem seu modo de viver; e fora destes sam raras as cazas onde se nelas se procurar a quantia de 12$800 se achem. Este Povo é grosseiro, sem cultura nem civilidade, sam raros os que sabem ler, e escrever etc.”
(Documentos interessantes etc., vol. XV, 1904, pp. 105-6. Apesar destas ponderações dos camaristas de Atibaia, Jaguari foi elevada a vila em seguida)
     Cobradores do dízimo e da vintena, oficiais de ofício, comerciantes, o padre, indigentes e pessoas sem qualificação ocupavam as 25 casas do povoado; mas pelo território da freguesia espalhavam-se mais de 4.400 pessoas; quase mil famílias, talvez. Qual a sua unidade de agrupamento? A freguesia, no conjunto, centralizada pelo que se costumava chamar a sua ‘capital’? Não, certamente; mas sim aquelas unidades fundamentais referidas acima: os grupos rurais de vizinhança, que na área paulista se chamaram sempre bairro.

     Esta é a estrutura fundamental da sociabilidade caipira, consistindo no agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas. As habitações podem estar próximas umas das outras, sugerindo por vezes um esboço de povoado ralo; e podem estar de tal modo afastadas que o observador muitas vezes não discerne, nas casas isoladas que topa a certos intervalos, a unidade que as congrega.” (pp. 79-81)

[...]

    “Em verdade, esse mecanismo de sobrevivência, pelo apego às formas mínimas de ajustamento, provocou certa anquilosidade de sua cultura. Como já se tinha visto no seu antepassado índio, verificou-se nele certa incapacidade de adaptação rápida às formas mais produtivas e exaustivas de trabalho, no latifúndio da cana e do café. Esse caçador subnutrido, senhor do seu destino graças à independência precária da miséria, refugou o enquadramento do salário e do patrão, como eles lhe foram apresentados, em moldes traçados para o trabalho servil. O escravo e o colono europeu foram chamados, sucessivamente, a desempenhar o papel que ele não pôde, não soube ou não quis encarnar. E, quando não se fez citadino, foi progressivamente marginalizado, sem renunciar aos fundamentos da sua vida econômica e social. Expulso da sua posse, nunca legalizada; despojado da sua propriedade, cujos títulos não existiam, por grileiros e capangas – persistia como agregado, ou buscava sertão novo, onde tudo recomeçaria. Apenas recentemente se tornou apreciável a sua incorporação à vida das cidades, sobretudo como operário.” (p. 107)

     “Mas ao lado destes elementos de fixação, uma característica importante da antiga vida caipira era a presença de terras disponíveis, que desempenhavam papel duplo e de certo modo contraditório. De um lado constituíam fator de reequilíbrio, na medida em que permitiam reajustar, sempre que necessário, situações tornadas difíceis economicamente pela subdivisão da propriedade, devida à herança, ou pela impossibilidade de provar os direitos sobre a terra. Estes fatores, aliás, eram mais poderosos como estímulo à mobilidade do caipira do que a instabilidade pura e simples, que se tem querido explicar, inclusive como decorrência da mestiçagem com o índio; mas cujas principais determinantes são sociais, sobrelevando o caráter precário dos títulos de propriedade. A posse, ou ocupação de fato da terra, pesou na definição da sua vida social e cultural, compelindo-o, freqüentemente, ao status de agregado, ou empurrando-o para as áreas despovoadas do sertão, onde o esperava o risco da destruição física ou da anomia social. A respeito desta, invoca-se quase sempre como causa a preguiça, que seria um traço fundamental do caipira e responsável pelo baixo nível da sua vida.” (p. 109)


"O caipira picando fumo", quadro de Almeida Junior (1893)

"O Violeiro", quadro de Almeida Junior, 1899




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