sábado, 24 de junho de 2017

TJRS condena padre por impedir enterro de luterano em cemitério católico


Houve um tempo no Brasil em que cada religião tinha seu próprio cemitério, mas isso hoje só é possível observar nas cidades mais antigas, já que a prática - felizmente - caiu em desuso.

Por isso, certas notícias são inacreditáveis no ano em que se comemora o 500º aniversário da Reforma Protestante, como esta publicada no Consultor Jurídico:

Impedir enterro de luterano em cemitério católico é discriminação religiosa

Jomar Martins

Impedir o enterro de pessoa que professa fé diferente da congregação religiosa que administra o cemitério atenta contra direitos de personalidade previstos no artigo 5º da Constituição.

O fundamento levou a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a condenar em dano moral, solidariamente, um padre e sua diocese, que não permitiram o enterro de um luterano, morto no mesmo acidente que vitimou sua família católica. A filha dele, autora da ação indenizatória, irá receber R$ 15 mil de indenização.

Segundo o acórdão, ao lado do direito natural de prestar honras fúnebres aos entes familiares, existe o direito fundamental, presente nos textos constitucionais, de não sofrer qualquer discriminação em razão de opção religiosa. E este direito vigora não só em face do ente público, mas também nas relações entre particulares.

Para o relator da Apelação, desembargador Eugênio Facchini Neto, faltou sensibilidade ao representante da Igreja Católica, que não reconheceu a excepcionalidade da situação. E o pior: os depoimentos mostram que o real motivo para não autorizar o enterro era religioso, e não porque o morto não era associado da congregação ou deixou de contribuir para a manutenção do cemitério – causa alegada pelos réus.

“No caso em tela, tenho que a conduta do padre demandado fez com que a morte efetivamente separasse o que em vida foi um belo e cristão exemplo de ecumenismo — união amorosa e frutuosa de uma católica com um luterano, cada qual seguindo a sua crença íntima e observando seus cultos religiosos, sem que isso consistisse em empecilho para uma vida em comum, ambos observando os mesmos mandamentos oriundos de um mesmo Senhor, aprendidos na mesma Bíblia sagrada”, discorreu no acórdão o relator.

Facchini Neto afirmou que os líderes religiosos, especialmente os que atuam em pequenas comunidades fortemente divididas no aspecto religioso, devem difundir a cultura da tolerância e do acolhimento. “Com isso, se contribuirá para que as religiões possam ser efetivamente uma fonte de consolo interno e esperança para os crentes, sem descambar para as intolerâncias religiosas que, em grau exacerbado, tanta destruição e barbárie já causaram ao longo da história da humanidade, desde priscas eras até os nossos tempos”, concluiu. O acórdão foi lavrado na sessão de 24 de maio.

Impasse religioso

Todo o imbróglio teve início quando os pais e a avó materna da autora, ao retornarem do município de Poço das Antas, no Feriado de Finados de 2011, morreram em consequência de um acidente automobilístico ocorrido na altura do quilômetro 377 da rodovia Tabaí-Lajeado (BR-386). O casal, que vivia em união estável, e a sogra moravam em Porto Alegre.

Avisada do acidente, a autora tomou as providências para o enterro dos três no cemitério católico de Poço das Antas, terra natal das duas mulheres. O padre responsável pela paróquia, no entanto, não autorizou o enterro do pai da autora, que professava a fé luterana, ao contrário das duas, que eram católicas. “É uma norma da Igreja que não podemos quebrar. Só podemos sepultar em nosso cemitério pessoas católicas que contribuem e estejam em dia com a taxa anual”, explicou o padre à família da autora. Impasse firmado, o jeito foi enterrar o homem no cemitério do município de Teutônia, cidade natal dele.

Além da dor pela perda dos entes queridos, a autora ficou ainda mais abalada com a negativa da paróquia, pois teve de providenciar, às pressas, outro local para enterrar o pai. Seu desejo era de que todos fossem enterrados num mesmo lugar, pois, apesar de professarem fé distinta, viviam em plena harmonia familiar e social. O caso teve repercussão nacional, à época, e motivou ação indenizatória contra o padre e a Diocese de Montenegro, que reponde pelo cemitério católico de Poço das Antas.

Sentença improcedente

No primeiro grau, a juíza Patrícia Stelmar Netto, da 2ª Vara Judicial da Comarca de Teutônia, negou a reparação moral, por ausência de ato ilícito. Para a juíza, o cemitério, propriedade da Mitra Diocesana de Montenegro, por ser privado, pode estabelecer critérios e requisitos para aqueles que pretendem usufruir dos serviços funerários. Em síntese, quem pretende enterrar algum familiar no cemitério católico deve, pois, atender ao regulamento fixado pela comunidade que o administra.

“As testemunhas arroladas pelos demandados, todos residentes e domiciliados em Poço das Antas e membros da comunidade católica, afirmaram que o local é administrado pela Igreja Católica, sem auxílio do Poder Público municipal, sendo que o costume e tradição do local é de somente enterrar os sócios da comunidade, os quais pagam duas mensalidades anuais”, escreveu na sentença.

Assim, conforme a julgadora, a exigência do cumprimento de regras estabelecidas pela comunidade católica não poderia ser vista como discriminação religiosa. É que a negativa não se deu em virtude da crença religiosa, mas por faltar a condição de membro da comunidade, a qual pressupõe o pagamento de contribuição. Afinal, a liberdade religiosa é direito fundamental, garantido de forma expressa no artigo 5º, incisos VI e VIII, da Constituição.

Clique aqui para ler a sentença.
Clique aqui para ler o acórdão.



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