domingo, 1 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 1

Começamos hoje uma série de postagens especiais no mês que culmina com a celebração dos 500 anos da Reforma Protestante, a ser comemorada no dia 31 de outubro de 2017, tendo como protagonista o pensamento de Martinho Lutero acerca de questões da vida e da teologia que seguem motivando os debates atuais. Bom proveito a todos!

A ORAÇÃO - PARTE I

Em verdade, em verdade eu vos digo, se pedirdes alguma coisa ao Pai, ele vo-la concederá em meu nome. [João 16:23]

Cristo acabou de pregar seu sermão e disse aos discípulos o que deveriam saber. Agora, ele quer concluir, fazendo, por fim, uma exortação à oração. Ele falou-lhes longamente a respeito de muitos e grandes sofrimentos, da perseguição, do medo e da tristeza que lhes sobreviriam no mundo por causa dele e mostra-lhes tanto o conforto quanto a força que lhes permitirão lidar com isso e, também, promete-lhes ajuda para superá-lo mediante o Espírito Santo. Mas, por saber quão grande e dura é essa batalha e que a carne e o sangue são fracos demais para apreender esse consolo e não percebem com tanta força essa ajuda, sentindo, muitas vezes, que o oposto é verdadeiro – por isso, ele lhes aconselha, aqui, que recorram à oração e comecem a soluçar e a clamar a Deus, quando sentem a fraqueza que faz com que careçam de consolo, força e vigor para suportar e superar o sofrimento, o medo e a tristeza.

Falamos frequentemente da oração, de como ela é necessária e poderosa. Pois não basta que tenhamos a Palavra, saibamos e compreendamos tudo que deveríamos – tanto sobre a doutrina da fé quanto sobre o consolo e a vitória em todas as dificuldades. Requer-se algo mais, a saber, a ação, para que, subsequentemente, também vivamos como a doutrina e o conhecimento nos ensinam e nos orientam. Pois a sabedoria de Deus (isto é, a Palavra de Deus nos diz em Provérbios [8:14]: “Meu é o conselho, meu também é o executar”. Para que a doutrina seja autêntica, é necessário que Deus a revele e a outorgue; mesmo que já a tenhamos e saibamos tudo que se deveria ensinar e crer, e nada mais necessitemos, isso não significa que se tenha obtido o resultado desejado. Ainda falta muito para que pratiquemos aquilo que pregamos e aquilo para o qual exortamos.

Isso também se evidencia na vida e na atividade dos apóstolos. Veja-se como S. Pedro, João e Paulo (nos Atos dos Apóstolos), antes de terem sucesso na propagação do Evangelho, tiveram de se esforçar e batalhar em seu ministério. Pois o diabo está de prontidão com toa a força e faz o possível para impedir e obstruir o Evangelho. Ademais, ele possui a vantagem de ter como aliado, dentro de nossos próprios corações, a grande parcela de Adão que, por natureza, é preguiçosa, indolente e enfastiada demais para se engajar numa batalha como essa e sempre nos puxa para trás, tornando, assim, especialmente duro e desagradável continuar se opondo a tantos tipos de obstáculos e lutar até o fim.

O profeta Habacuque também fala disso em seu cântico, dizendo que embora os cavalos e carros de Deus sejam bem-aventurados e vitoriosos, ele marcha com eles pelo mar, pelas massas de grandes águas. A condição da cristandade é comparada a tais cavalos e veículos; aqui, animais e carros têm de passar em charcos profundos, onde há constante resistência, obstrução e atoleiro. No entanto, eles precisam passar e, como diz o profeta, ser quadrigae salutis [‘carros de salvação”, Hab 3:8], tais carros de combate e cavalos que detêm a vitória.

Por isso Cristo diz agora: “Embora esteja chegando o dia em que, de novo, os verei e vocês se alegrarão eternamente e não mais necessitarão perguntar-me coisa alguma, pois saberão tudo que devem saber sobre mim, vocês carecerão do poder de cumprir o que deveriam e gostariam de realizar, não somente por causa do diabo e do mundo, mas, também, por causa de sua própria carne”, como confessa e lamenta S. Paulo em relação a si mesmo, em Rm 7 [:18-19]: “Encontro dentro de mim [a vontade de fazer] o que eu conheço e gostaria de fazer, [isto é], o que é bom e o que me dá prazer e alegria. Sinto, porém, um outro mestre no meu corpo e nos meus membros que me freia e me torna renitente, de modo que tal [boa] ação não se realiza”. Diz, igualmente, em Gl 6 [sc. 5:17]: “O desejo da carne é contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, de modo que vocês não fazem o que querem”, etc.

Ele [Paulo] também gostaria de que tudo funcionasse adequadamente em toda parte, exatamente como nós gostaríamos de estar livres de tristeza, preocupação, impaciência e pensamentos maus; [gostaríamos] de encontrar constante consolo e alegria no Evangelho, de ver a graça e o poder do Espírito para que todos fossem íntegros, devotados ao Evangelho e agissem de acordo com seus ensinamentos. Com esse propósito, oramos, exortamos e suplicamos com toda diligência e fidelidade e fazemos tudo que está ao nosso alcance. Mas, mesmo assim, tudo acontece como pode [acontecer]. Sempre há obstrução e obstáculo; quanto mais tempo passa tanto mais eles aumentam. Que, então, devemos fazer, neste lamaçal pelo qual precisamos passar e viajar, [no qual precisamos] lutar e temer, sem, no entanto, conseguir sair dele?

“Não há outro conselho” (diz Cristo) “senão erguer imediatamente os olhos e o coração em direção ao céu e começar a orar a meu Pai Celestial. Depois que ensinaram, exortaram e fizeram tudo que seu ofício exige, e, mesmo assim, as coisas não andam e não conseguem progredir, então procurem ajuda, busquem [nova] força, ajudem-se todos uns aos outros, com gritos e exclamações, a levantar e a empurrar o carro. Pois é isso que Deus quer, isto é, que não só conheçam a doutrina e o que vocês já possuem como tendo sido dado por ele, mas também, que procurem junto a ele aquilo de que ainda necessitam e carecem, e descubram que não podem fazer coisa alguma, mas que tudo – o começar e o terminar, o querer e o realizar – deve ser buscado junto a ele e dado por ele”, como [diz] S. Paulo [Fp 2:13], etc.

É aqui que começa, realmente, a batalha contra o abominável diabo que, da mesma maneira como ele resiste em toda parte a Cristo e ficaria contente se o Evangelho não fosse ouvido em lugar algum, e não se cresse nele ou que não se constituísse um guia para a vida e a conduta, assim, ele também impede essa ação, fazendo com que não se goste de orar e dificilmente se recorra à oração. Pois ele, igualmente, tem plena consciência da força e da eficácia da oração bem como de que os cristãos não possuem defesa maior e mais forte contra todo o poder dele. Não estou falando, agora, daqueles que não são cristãos, pois a única maneira que esses têm de orar é tagarelar e grasnar o saltério, que mais parece um bando de gansos comendo aveia. Estou dizendo, isso sim, que é excessivamente difícil para cristãos e crentes orar de forma adequada. Foi por isso que alguns dos antigos Pais disseram que nenhum trabalho na terra é tão penoso quanto orar apropriadamente.

Embora o ministério da pregação também seja duro e acarrete muita dificuldade e preocupação, ele tem a grande vantagem de fazer com que eu, apesar de não ter capacidade nem ser digno de pregar, tenha coragem de pegar o Livro e, em nome de Deus dizer a meu próximo: “Meu caro amigo, está escrito aqui. Estás escutando a Palavra de Deus, não a minha; tua própria salvação e bem-aventurança estão em jogo, não a minha”. Tendo dito isso, fiz o meu dever; a responsabilidade de aceitar ou não aquilo que lhe digo é dele. Mas quando devo falar e orar a Deus por mim mesmo, logo se apresentam cem mil obstáculos antes que eu possa começar. O diabo é capaz de colocar todo tipo de motivos no caminho e pode me criar caminho e não penso mais na oração. Tente fazê-lo aquele que jamais o experimentou. Decide-te seriamente a orar e verás como pensamentos, os mais diferentes possíveis, te assaltarão para que te distraias e não possas começar a orar adequadamente.

Se falarmos aqui tão-somente dos obstáculos maiores e principais, o primeiro impedimento é pensarmos, inspirados pelo diabo: “Ah, tu, agora, ainda não estás pronto para orar! Espera uma meia hora ou um dia até que estejas mais preparado ou até que tenhas realizados antes isso ou aquilo”. Entrementes, aparece o diabo e te distrai naquela meia hora, de modo que durante o dia todo não mais pensas em orar. Dia após dia, ele te mantém ocupado com outros negócios e impede [que ores]. Esse também é, praticamente, o obstáculo mais comum, constituindo uma perfídia e um ardil extremamente perniciosos do diabo (que ele, muitas vezes, tenta comigo e com outros). Ademais, nossa carne e nosso sangue que, em si, já são negligentes e frios, dão-lhe uma vantagem e nos impedem de orar como nós mesmos gostaríamos. Embora possamos estar prestes a começar [a orar], mas logo desistimos [porque somos desviados por] pensamentos estranhos e inúteis, de modo que deixamos a oração de lado.

Em segundo lugar, também se insinuam, naturalmente, pensamentos como estes: “Como podes orar a Deus e dizer ‘Pai nosso’? És indigno demais e vives diariamente em pecado. Espera até que te tornes mais piedoso, tenhas ido à confissão e ao Sacramento, até que não somente estejas disposto e preparado para orar, mas também sintas um desejo ardente para orar e, assim, possas te dirigir a Deus com confiança e dizer ‘Pai nosso’ de todo teu coração”. Esse é o verdadeiro e grave obstáculo, por excelência, com que o coração precisa lutar e sob o qual precisa se contorcer até que tenha removido a grande pedra e possa apresentar-se diante de Deus e invoca-lo a despeito de se sentir indigno. Cada qual tente isso e me diga como é fácil para ele espantar esses pensamentos e dizer com toda a sinceridade: “Meu amado Pai celeste!”, etc.

Na comunidade e em grandes grupos, é um pouco mais fácil [orar], pois nos reunimos todos e dizemos “Pai nosso”. Mas não é tão fácil quando estamos sozinho e cada qual deve orar por si mesmo, quando nosso coração nos diz o contrário e o diabo atiça estes pensamentos e os transforma numa labareda: “És uma pessoa infame e não mereces viver. Portanto, como ousas apresentar-te diante de Deus e chama-lo de Pai?” Por isso, é extraordinariamente difícil e a maior de todas as artes orar de maneira correta, não por causa das palavras ou da boca, mas para o coração poder chegar a uma conclusão certa e firme e apresentar-se diante de Deus com toda a confiança e dizer: “Pai nosso”. Pois aquele que pode alcançar um pouco de tal confiança na graça já passou pelo pior e já colocou a primeira pedra para [começar a] orar. Depois, tudo anda como deve.

Em terceiro lugar, o diabo aplica um golpe adicional visando a inutilizar tua oração por meio de pensamentos como estes: “Meu caro, por que estás orando? Escuta como tudo está quieto em tua volta. Achas que Deus escuta e leva em consideração aquilo que oras?”, despertando em ti a dúvida, para que desprezes tua oração e a deixes de lado, e jamais descubras o que é aa oração e do que ela é capaz. Experimentei o que isso significa e também o observei em outros, sobretudo em S. Bernardo, que admoestou muito diligentemente os seus [ouvintes] para que não fossem à Igreja orar com tal dúvida, sem a certeza de que Deus leva em consideração e escuta a oração deles. Pois, verdadeiramente, não se deve zombar de Deus dirigindo-se a dele como as palavras “amado Pai celeste” sem crer que ele seja isso.

Por isso (como eu disse e o próprio Cristo indica aqui), para resistir a todas as insinuações do diabo e a nossos próprios pensamentos, é necessário lutar energicamente contra [a voz d]o coração e dizer: “Diabo nojento, se é isso que queres, leva um patife malfeitor, não a mim! Se não estou suficientemente preparado e disposto e se não sou piedoso que chega neste momento ou hoje, muito menos estarei preparado em meia hora ou em uma semana. Colocando de lado, pois, essa falta de preparação, vou orar, entrementes, um Pai nosso antes que eu me torne ainda menos preparado”. Acostuma-te, pois, a orar cada noite, ao ires para a cama, antes de dormir, o Pai nosso, e, de novo, ora antes de fazer qualquer outra coisa. Dessa maneira, de surpresa e sem aviso, antecipas-te ao diabo, não importa se estás preparado ou não, antes que ele te surpreenda e faça com que proteles [a oração]. Porque é melhor que ores agora, quando estás meio preparado, do que mais tarde, quando não estás preparado em absoluto, e que comeces a orar apenas para desgosto e aborrecimento do diabo, mesmo que consideres a oração algo muito difícil e que penses não estar, de forma alguma, preparado para ela.

(para ler a parte 2 clique aqui)

(Martinho Lutero, “Os capítulos 14 e 15 de S. João, pregados e interpretados pelo Dr. Martinho Lutero e Capítulo 16 de S. João, pregado e explicado”, 1537/1538, tradução de Hugo S. Westphal e Geraldo Korndörfer, in MARTINHO LUTERO, Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre; Canoas: Ulbra, 2010, vol. 11, págs. 401-406)



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