terça-feira, 10 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 10


O DIREITO

Alguém poderá dizer: Mas como? Não se deve defender o direito? Devemos renunciar à verdade? Não nos foi ordenado morrer por amor do direito e da verdade? Acaso os santos mártires não sofreram por causa do Evangelho? Não quis ter razão o próprio Cristo? Em todos os casos acontece que, às vezes, tais pessoas têm razão perante o público (e, como alardeiam, perante Deus), e agem bem e sabiamente. Respondo: Está na hora e urge abrir os olhos. Aqui está o nó da questão: importa, pois, que se esteja bem instruído sobre o que é estar com a razão. É certo que se deve sofrer qualquer coisa por amor da verdade e do direito e que não se deve negá-los, por mais insignificante que seja o assunto. Pode, inclusive, ser que tenham razão. No entanto, arruínam o direito por não executarem o direito conforme o direito, não agem com temor, não têm a Deus diante dos olhos. Acham que basta que seja direito, devem e querem prosseguir por sua própria autoridade e levar o jogo até o fim. Com isso transformam seu direito em injustiça, embora, em princípio, fosse justo. O perigo, porém, é muito maior quando apenas acham que é direito, mas não têm certeza, como ocorre nos elevados assuntos que dizem respeito a Deus e sua justiça. Em primeiro lugar, todavia, queremos falar do simples direito humano e dar um exemplo singelo e compreensível.

Acaso não é verdade que dinheiro, bens, corpo, honra, mulher, filhos e amigos, etc. também são coisas boas que o próprio Deus criou e deu? Sendo dons de Deus e não tua propriedade, [suponhamos] que ele queira pôr-te à prova para ver se serias capaz de renunciar a eles por amor a ele, aferrando-te mais a ele do que a esses seus bens; que ele te mandaria um inimigo que os tirasse de ti todos ou em parte e te prejudicasse, ou então os perdesses por morte e ruína, ou de outra forma. Crês que, neste caso, terias motivo justo para esbravejar, enfurecer-te e para recuperá-los com violência e à força, ou ficares impaciente até recobrá-los? Alegarias que são coisas boas e criaturas de Deus que ele próprio fez, e que toda a Escritura considera boas essas coisas; por isso estarias disposto a cumprir a palavra de Deus e proteger esses bens com o corpo e a vida e recuperá-los; ou então, ao menos, não estarias disposto a renunciar a eles espontaneamente nem entregá-los resignadamente. Não pareceria bonito? Se quisesses proceder bem neste caso, não deverias tentar passar com a cabeça pela parede. Como então? Deverias temer a Deus e dizer: Bem, querido Deus, são coisas boas e bens teus, como diz tua própria palavra, a Escritura. Não sei, porém, se mos queres conceder. Se porém, soubesse que preferirias vê-los em meu poder do que no poder daquele outro, quereria servir a tua vontade e recuperá-los com o empenho de corpo e bens. Como, porém, não sei nenhuma nem outra e vendo [apenas] o fato de que, no momento, permites que me sejam tirados, entrego a causa a ti. Aguardo o que devo fazer e estou disposto a tê-los ou a prescindir deles.

Eis aí uma alma justa; ela teme a Deus, conta com a misericórdia, como canta a mãe de Deus; a partir daí se pode compreender por que, em tempos passados, Abraão, Davi e o povo de Israel lutaram e mataram muita gente: empreenderam [essas coisas] por vontade de Deus, temiam [a Deus] e não lutavam por causa dos bens, mas porque Deus o esperava deles, como o demonstram os relatos, indicando, em geral, a ordem prévia de Deus. Vê, aqui a verdade não é negada: a verdade afirma que são coisas boas e renunciar a esses bens e estar disposto, a todo momento, a prescindir deles, quando Deus assim o quer, e que deves prender-te somente a Deus. A verdade não te obriga a recuperar os bens ao afirmar que são bons. Tampouco te obriga a dizer que não são bons. Muito antes deves ter uma atitude serena em relação a eles e confessar que são bons, e não maus.

Da mesma forma deve-se proceder também com o direito e toda sorte de bens da razão ou da sabedoria. O direito é uma coisa boa e dádiva de Deus – quem iria duvidar disso? A própria palavra de Deus afirma que o direito é bom e jamais alguém deve admitir que suas causas boas e justas sejam injustas ou más; antes deve morrer por isso e renunciar a tudo que não é de Deus; pois isso significaria negar a Deus e sua palavra que diz que o direito é bom e não mau. Acaso quererias gritar por causa disso, raivejar, esbravejar e destruir o mundo inteiro quando esse direito te é tirado ou suprimido? (Há os que procedem desse modo, os que clamam ao céu, provocam toda sorte de miséria, destroem terras e povos, cobrem o mundo com guerras e derramamento de sangue). Sabes acaso se Deus quer deixar-te essa dádiva e esse direito? Ora, é propriedade dele e ele pode to tirar hoje ou amanhã, dentro ou fora, por meio de inimigos e amigos e como quiser. Ele quer experimentar-te se, por amor dele, também estás disposto a renunciar ao direito, a não ter razão e sofrer injustiça, suportar a ignomínia por sua causa e a te prenderes somente a ele. Se és temente a Deus e pensas: Senhor, tudo é teu, não quero tê-lo a não ser que saiba que mo queres conceder; que se vá, seja o que for, contanto que tu sejas meu Deus – então se aplica este versículo: “E sua misericórdia está com aqueles que o temem”, que nada querem fazer sem sua vontade. Vê, aí está cumprida a palavra de Deus em ambos os casos: em primeiro lugar, confessas que o direito, tua razão, teu conhecimento, tua sabedoria e toda tua intenção são justos e bons, como o diz a própria palavra de Deus. Em segundo lugar, prescindes desses bens voluntariamente por amor de Deus, e aceitas ser destruído e injuriado injustamente pelo mundo, como o ensina igualmente a palavra de Deus. “Duas coisas são boas ou justas: confessar e conquistar”. Para ti basta confessar que tens o bem e o direito; se não o puderes conquistar, entrega isso a Deus. A ti se ordenou confessar; o conquistar está reservado a Deus. Se ele quiser que também o conquistes, ele mesmo o fará ou então to colocará à disposição, sem que te tivesses lembrado, de maneira que o deverás pegar na mão e conquista-lo de uma forma como jamais o terias imaginado ou desejado. Se ele não quiser, que te baste sua misericórdia. Ainda que te tomem a vitória do direito, não te podem tomar o confessar. Vê, assim temos que nos distanciar, não dos bens de Deus, mas do mau e perverso apego a eles, de modo que possamos renunciar a eles ou usá-los com tranquilidade, para que, em todos os casos, nos apeguemos somente a Deus. Isso deveriam saber todos os príncipes e autoridades que não se satisfazem com o confessar do direito, mas também querem, em todos os casos, conquista-lo e vencer, sem temor de Deus. Cobrem o mundo de sangue e miséria, acham que procedem bem e com justiça, porque a causa é justa ou, ao menos, acham que é justa. Isso não é outra coisa do que o orgulhoso e presunçoso Moabe, que declara e se considera digno a si mesmo de possuir o nobre e belo bem e dom de Deus (o direito), quando, na verdade, caso se contemplasse bem na presença de Deus, não é digno sequer de que a terra o suporte e de comer a códea [casca, crosta] do pão, por causa de seus pecados. Oh cegueira! Oh cegueira! Quem é digno ainda que seja da menor criatura de Deus? Contudo, não apenas queremos ter as criaturas mais elevadas, o direito, a sabedoria e a sua honra, mas ainda queremos preservar e conquista-las com furioso derramamento de sangue e toda sorte de desgraça. Depois vamos e fazemos orações, jejuamos, ouvimos a missa, fundamos igrejas com essa mente sanguinária, furiosa e louca, de sorte que não admiraria se as pedras arrebentassem diante de nossos olhos.

(LUTERO, Martinho. O Magnificat. 1521. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegra: Concórdia. Tradução Ilson Kayser. 1996. Vol. 6, págs. 56-58)



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