segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Já houve filme cristão com roteirista ateu homossexual


Gore Vidal foi um grande escritor norteamericano que morreu no último dia 31 de julho. Ateu e homossexual assumido, pouca gente se lembra que ele foi responsável em parte pelo roteiro do filme Ben-Hur, num enredo que corre paralelamente à vida de Jesus Cristo, cujo rosto nunca aparece no filme (como na cena em que Ele dá água a Ben-Hur no vídeo abaixo), mas o seu evangelho é o grande vitorioso no final.



Abaixo, uma ótima análise dessas questões no artigo publicado por Alexandre Leitão na sua coluna Cine História na Revista de História:

Ben-Hur

Rodado nos anos 1950, o filme de Wiliam Wyler se tornou uma das maiores produções cinematográficas cristãs de todos os tempos. Atualmente, consta na lista das obras recomendadas pelo Vaticano

William Wyler era famoso por dirigir dramas e comédias românticas, como A Princesa e o Plebeu (Roman Holiday), e Gore Vidal por ser um dos mais polêmicos escritores norte-americanos da segunda metade do século XX. O primeiro vinha de uma família judaica proveniente da Alsácia francesa, o outro era liberal, ateu e fora criado em uma rica família do Norte americano. Em 1959, ambos se juntaram a uma equipe de roteiristas para produzir o filme que definiu o cinema épico dos anos 1950: Ben-Hur: uma história do Cristo, estrelado por Charlton Heston e baseado na obra homônima do general norte-americano Lew Wallace, escrita no século XIX. Atualmente, Ben-Hur é uma das películas a integrar a lista de filmes recomendados pelo Vaticano, dentro da subseção de obras religiosas.

Roteirizado em parte por Vidal, que veio a falecer na noite desta terça feira (31 de julho), a história acompanha as vidas paralelas do nobre judeu Ben-Hur, membro de uma poderosa casa dinástica da Judéia, e de um pobre carpinteiro galileu chamado Jesus de Nazaré. Trata-se de uma simples história de vingança, mas que, imbuída de um verdadeiro ethos cristão, ao fim busca transmitir uma mensagem de redenção.

Na trama, Ben-Hur tem sua vida destruída pelo tribuno romano Messala, após recusar-se a colaborar plenamente com o Império dos Césares. Acusado por um crime que não cometeu, é condenado a viver o resto de seus dias nas galeras imperiais, remando até a morte. Pouco nos é revelado sobre Messala, apenas que, anos antes dos eventos retratados no filme, ele travou uma profunda amizade com um adolescente Ben-Hur, e regressando a Jerusalém como uma das mais altas autoridades romanas esperava contar com a cooperação ilimitada do nobre judeu. Na década de 1990, Vidal afirmou ter sempre pensado no ódio de Messala por Ben-Hur como resultado de uma rejeição amorosa, o que inseriria um subtexto homossexual à trama. Segundo o autor, Wyler direcionou a atuação do britânico Stephen Boyd (o intérprete de Messala) para esse sentido, deixando claro a ele que o papel deveria ser pensado a partir do prisma de um ex-amante rejeitado. O diretor teria ainda preferido manter Charlton Heston “no escuro” a respeito da escolha artística tomada.

Porém, o mais importante traço do filme continua a ser sua busca em associar a história de decadência, superação, vingança e arrependimento de Ben-Hur àquela de Jesus, com o qual o protagonista esbarra em diversos momentos da trama. Numa das cenas mais antológicas da obra, Ben-Hur já se tornou um cativo do Império Romano, acusado de ter atacado o governador da Judéia, e a trupe de condenados que integra está seguindo pelo deserto. Em uma das paradas, os criminosos, acorrentados por um corpulento centurião, não recebem água de seus captores. Tombando por terra, Ben-Hur chega ao auge do desespero. Homem outrora poderoso, uma referência em sua comunidade, é reduzido à reles condição de escravo, sendo forçado a testemunhar a prisão de sua mãe e sua irmã, perdendo mesmo o direito de beber um gole de água. Jogado na areia, o nobre clama por misericórdia, quando de súbito um homem misterioso começa a afagar sua testa, oferecendo-lhe uma tina de água fresca. Ao encará-lo, Ben-Hur fica perplexo diante de seu rosto, que nós, os espectadores, não podemos ver. Logo em seguida, o centurião aproxima-se. De chicote na mão, está disposto a pôr fim a tudo, e agredir quem dera de beber a um homem sedento. Mas, ao ver seu rosto, retrai-se, tomado de medo e vergonha. A escolha de não mostrar o rosto de Jesus partiu de Wyler, como uma demonstração de respeito ao autor Lew Wallace. Considerava essa uma forma de referenciar a crença na divindade de Cristo. Nesse contexto, dar-lhe um rosto seria necessariamente torná-lo mundano.

Após uma série de incidentes incríveis, anos depois da condenação, Ben-Hur consegue regressar a Jerusalém, chamando o terrível Messala para um “duelo”. Ambos participam, no último ato da história, de uma corrida de bigas, na qual a vida de cada um dos competidores estará em risco. A sequência, gravada na Cinecittà, o grande complexo cinematográfico da Itália, se tornaria a mais emblemática do filme. Através dela, Wyler brinca com os anseios do expectador. Queremos ver alguma forma de punição, capaz de equiparar-se à magnitude dos crimes cometidos pelo tribuno romano, e com ela somos presenteados. Quando as bigas de Messala e Ben-Hur se aproximam, o romano faz todo o possível para derrubá-lo, dilapidando suas rodas e chicoteando-o. Em um lance de sorte, é destruída a biga do próprio Messala, fazendo com que ele seja arrastado por seus cavalos e atropelado por outros competidores. Passada a satisfação inicial de que somos imbuídos, diante do sucesso da vingança, Ben-Hur vai ao leito de seu inimigo e se depara com um doente. O tribuno deixa de ser um alvo de ódio para tornar-se indivíduo digno de misericórdia.

Ele não mostra qualquer arrependimento por seus atos, mas o que antes podia ser encarado como pura maldade torna-se fraqueza, medo e loucura. Por pior que fossem seus pecados, Ben-Hur percebe que nem Messala, um homem de grande porte físico, merece ouvir um cirurgião dizer-lhe que suas pernas deverão ser amputadas. Junto com ele, arrependemo-nos da vingança e entendemos que enquanto Ben-Hur se dedicou a matar um inimigo ignorou a procura de sua família. Messala não teve a oportunidade de obter sua redenção, mas o protagonista a tem a partir desta cena.

Ben-Hur exerceu um tremendo impacto cultural. Ajudou a salvar os estúdios MGM, que para assegurarem o pagamento dos custos de produção do filme venderam as salas de cinema de que dispunham nos Estados Unidos. Até então, grandes estúdios de Hollywood controlavam a distribuição de suas películas por meio da posse de salas de cinema. A prática começou a acabar a partir do novo modelo de negócios iniciado pela MGM. Os investimentos dispendidos pela produção, quando de sua estadia na Itália, produziram um verdadeiro Renascimento nos estúdios do país. Estes passaram a produzir filmes com as sobras deixadas por Ben-Hur na Cinecittà, dando assim uma oportunidade única a cineastas iniciantes. Um destes jovens diretores, que começou sua carreira fazendo épicos ao estilo americano, se consagraria como o criador de um gênero: Sergio Leone, inventor do "Western Spaghetti".

Ben-Hur foi agraciado com 11 Oscars e tornou-se um dos maiores sucessos de bilheteria de todos os tempos. Mas talvez o maior triunfo da obra tenha sido aquele apresentado no início deste texto. Trata-se de um filme capaz de subverter alguns dos preceitos mais fulcrais de todos os gêneros nos quais se insere, injetando ação em uma história religiosa e arrependimento em uma trama de vingança. No percurso, Ben-Hur transforma-se na obra cristã por excelência, pois indo além da encenação de um relato evangélico, busca traduzir fidedignamente a noção mesma da misericórdia.



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